Caros visitantes virtuais,
Escrevo-vos hoje sobre uma pessoa
muito especial que conheci há cerca de dois meses e com quem tenho tido
conversas muito interessantes e enriquecedoras sobre esperança.
Chama-se André, é de
nacionalidade L. (não identifico por razões de segurança do próprio), tem 43
anos, e é um sem-abrigo de um dos muitos largos de Lisboa que, pela mesma razão,
não identifico. Este post é-lhe dedicado e ele autorizou a que o escrevesse e
ler-lho-ei, pois ele como é de calcular, não tem acesso a computador, muito
menos internet. No entanto, não dispensa a música. À noite, deitado sob o seu
abrigo, adormece sempre a ouvir o pequeno rádio que é o seu conforto das noites
quentes ou frias.
As fotos contidas neste post são
todas reais e estão a ser publicadas com autorização do próprio. Claro que tive
o cuidado de as tirar por forma a não permitir identificar o local, de onde
André de vez em quando tem que se ausentar para depois regressar por forma a
proteger-se dos perigos e ameaças constantes que a sua situação envolve. Nunca
sei quando parte ou regressa, mas vem sempre com o mesmo sorriso ao meu
encontro. Um sorriso de quem tem uma alma limpa e sente a alegria de encontrar
um amigo que sabe que o escuta com todo o respeito e consideração e em quem
pode confiar os seus segredos que se tornam mais leves quando partilhados, como
sucede com todos os verdadeiros amigos. Eu, encontro-o também sempre com a
mesma alegria quando ele regressa, sem ele o largo fica vazio e sem alma. Claro
que desejo que a sua situação se resolva, que consiga reaver novos documentos
para que possa finalmente ter trabalho e voltar a ter um quarto e dinheiro para
comida certa todos os dias, mas quando isso suceder, a minha alegria será
sempre maior e para mim aquele ficará sempre a ser o Largo do André.
André é pela quarta vez
sem-abrigo em Portugal, é limpo e cuidado com a sua higiene que faz mal inicia
a madrugada com água do fontanário e champô diluído para não gastar demasiado.
Cuida das suas poucas roupas, tem um abrigo impecável e vejo-o sempre feliz e a
sorrir apesar das muitas agruras pelas quais a sua vida já passou, entre as
quais ser tropa na Rússia, ter tido dois casamentos falhados, dramas familiares
e problemas de emprego por causa de não se submeter às mafias, à corrupção de
documentos nem à traição de amigos que ele protegeu quando chegaram e que o
roubaram depois. Mas, tudo isto ele aceita como fazendo parte da vida. Diz que
Deus dá o sol e a chuva e que gosta de ambos, apesar de no seu abrigo não ter o
conforto de uma casa.
Arranjou-me numa mercearia um
cartão limpo que guarda e me traz sempre que venho conversar com ele ao largo,
para eu me sentar sem o banco estar frio nem quente. Partilhamos conversas
sobre o ser humano e sobre a vida. Quando lhe roubaram o cartão, passou-me a
dar o casaco dele para eu me sentar, tendo sempre a sensibilidade de dizer que
está lavado. As atenções mais simples e mais despojadas são as que mais nos
tocam pois são as mais genuínas e gratuitas.
Tratava-me por tu, mas por “ a
senhora” e quando percebeu por terceiros que me viu tratar assim as funções
profissionais de chefia que eu desempenhava passou a tratar-me por “doutora”.
Eu disse-lhe que não me tratasse assim e ele explicou-me que era uma questão de
respeito. Acho admiráveis os valores educativos dele, embora me deixasse
desconfortável aquele tratamento que me fazia lembrar os tempos senhoriais de
classes abastadas claramente separadas pelas classes trabalhadoras. Até que ele
sentiu que o tratamento certo para mim, era mesmo Célia e é o que usa agora,
desde o primeiro dia em que se comoveu ao falar comigo, o que sucedeu passadas
longas conversas. Somos agora dois amigos, iguais em dignidade humana, mas
infelizmente em diferentes condições de dignidade de existência de condições
básicas.
André é uma força da natureza, um
poço de valores éticos e de força na adversidade, uma genuína
força de esperança e de humanidade com quem muito tenho aprendido e que por
isso partilho neste blogue com muito gosto, pois creio ser útil para os meus visitantes
virtuais sejam quais forem as suas idades, género, classe económica ou social.
Nunca me pediu nada, pelo
contrário, um dia tinha dinheiro para cigarros e fez questão de me oferecer um
dos dele. Eu um dia convidei-o para tomarmos juntos algo no café mais próximo.
Foi uma conversa rica como sempre, vinda de um homem que sente a esperança em
cada dia apesar de não ter o conforto físico que qualquer ser humano merece.
De vez em quando partilho com ele
metade do meu almoço, que acho sempre excessiva a dose que servem nos
restaurantes e que infelizmente na maior parte dos casos se destina ao lixo, o
que é um desperdício que me incomoda. Trago-lhe por vezes o almoço e falamos
sobre ementas que ele já provou e rimos com descontracção dos pombos no largo sobre
os quais ele pela cor sabe dizer se estão saudáveis ou doentes e muitas outras
coisas que aprendeu com os hábitos de vida destes seus companheiros de rua.
André não tinha trabalho porque
teve que ultrapassar montanhas para reaver novos documentos de identificação e
carta de condução, pois os que tinha foram-lhe roubados. Agora que já conseguiu
superar muitos obstáculos, que me contou e não conto para o proteger, sonha
voltar ao seu país. Partilhou comigo os seus tesouros, brochuras do seu país e
mapa do mesmo onde localizou a sua terra-natal onde tenciona voltar, aonde não
vai há 14 anos, desde que veio para Portugal, onde sonha rever locais e pessoas
que lhe são queridas e regressar ao nosso país que diz que é um país muito
bonito onde vale a pena viver.
Vi-o retirar do lixo um saco de
pão intacto ainda com a etiqueta do supermercado onde tinha sido comprado e
tive vergonha de todos nós os que desperdiçamos sem pejo nem respeito os bens
que temos e que são essenciais para a vida de tantos sem-abrigo e tantos pobres
deste país.
Ao pé de mim arranjou um
chapéu-de-chuva quase novo, a que apenas bastava arranjar uma vareta, o que ele
fez com mestria, mostrando-me depois orgulhoso o seu trabalho. Mais uma vez
tive vergonha de nós os que desperdiçamos sem consciência os bens que possuímos
e que não valorizamos como merecem ser valorizados e respeitados pois são
produto do trabalho de alguém e pagos com o dinheiro do nosso trabalho que nos
custa a ganhar e a que muita gente em Portugal e no mundo não tem.
André mantém o “seu” largo
impecavelmente varrido e compra lixivia para desinfectar os bancos de pedra que
jovens inconscientes e embriagados enchem despudoradamente de urina quando saem
das discotecas, bem como arranja outras alternativas para os bancos que estão já destruídos. Indigna-se com as faltas de educação e de valores de jovens que
crescem sem desenvolver personalidades de respeito perante os outros e a vida.
Abana a cabeça desconsolado com o que vê nessas noites de folia muitas vezes
inconsequente de jovens que constroem o vazio por cima de vidas que merecem
tanto valor e que eles desprezam e desperdiçam, pois de toda aquela embriaguez
resultam apenas tristeza e desilusão, bem como muitas vezes uma ociosidade que
se vai instalando e os desliga do esforço que todos temos que fazer para viver
uma vida saudável, equilibrada, sociável e feliz, sejam quais forem as
condições económicas e sociais em que vivemos.
Lembrei-me agora que nas nossas
muito e sempre agradáveis conversas, construtivas e esperançosas me esqueci de
lhe contar que li em tempos na internet que um sem-abrigo dos Estados Unidos da
América, de nome Glen James, encontrou uma vasta quantia de dinheiro e o foi
devolver. Quando estiver com ele na próxima semana vou levar um print deste
post do blogue e ele vai ficar feliz por saber que pelo mundo inteiro vai
havendo gente de caráter reto e não apenas pessoas que se roubam umas às
outras, que se agridem e violentam, que traem amigos que os ajudam, meio que
ele, infelizmente, bem conhece. Mas, sempre depois de me contar cada um dos
terríveis episódios que tanto o têm feito sofrer, diz que há que ir em frente,
orgulhoso da sua formação de homem-de-bem e das dádivas que Deus lhe vai
concedendo.
Aprendi e continuo a aprender
muito com André, por isso partilho convosco esta forma de viver em esperança e
ser esperança em cada dia, mesmo não tendo abrigo nem o mínimo essencial
garantido. Eu diria que André vive como os lírios do campo que Deus veste de
cores magníficas e que, como diz a Bíblia, nem na rica corte do Rei Salomão
houve vestes que se lhe pudessem comparar.
Eu considero um privilégio tê-lo
conhecido e estou-lhe agradecida por me ter deixado aproximar dele, por ter
aceite e continuar a aceitar partilhar comigo episódios e palavras que tanto
revelam da vida, da sua vida, da vida de todos nós e do seu sentido. No caminho
um do outro para eu poder aprender melhor o que é verdadeiramente importante na
vida e fazer chegar até vós, caros visitantes virtuais, espalhados pelo mundo,
que não conheço, mas a quem me sinto ligada pois sei que leem estas palavras e
que, para muitos de vós elas vos dizem algo, ou este blogue não teria já mais
de 12.000 visitas do mundo inteiro, o que me surpreende e enternece cada vez
que consulto as estatísticas de visitantes virtuais e as cidades e países de
onde acedem a este blogue. Obrigada pela vossa presença do outro lado deste
blogue. Estou convosco, deste lado escrevendo e cada um de vós do outro lado
lendo. Sintam-se à vontade para deixar os vossos comentários e questões, embora
saiba que a maioria prefere ler e manter-se na sua intimidade reservada. Não
importa a atitude, o que importa é que nos liga esta busca constante da
esperança em cada dia. E, ela existe ou eu não conseguiria escrever tantos
posts sobre esperança desde que iniciei este blogue em julho de 2011 e continuo
por aqui, mais regular ou menos regularmente, conforme a minha vida o vai
permitindo.
E, como acho que nada na vida
acontece por acaso e que cada pessoa que verdadeiramente conhecemos se
estivermos de alma genuinamente aberta ao outro é uma preciosidade incomparável
a qualquer riqueza, talvez Deus nos tenha colocado no caminho um do outro com um propósito, o de nos enriquecermos um ao outro e nos valorizarmos mutuamente como seres humanos em cada dia e o de eu o levar até cada um de vós através do meu blogue.
Aprenda a ter esperança com
André, caro visitante virtual, com o que é e não com o que tem. Vale a pena,
acredite. Ele é feliz e uma grande lição de esperança e felicidade para todos nós.
CC
Adorei. Só um carácter como o teu pode reconhecer no outro tamanho valor. Sem olhar a nada mais para além de tempo, um ser humano, outro ser humano, uma palavra, ou várias, um gesto, enfim: afectos - aquilo que justifica termos um dia passado por este mundo. É um orgulho ter no meu círculo de amigos almas grandiosas como tu. Um beijo. Zézinha (Rosa)
ResponderEliminarQuerida Zezinha,
EliminarMuito obrigada pelas tuas tão bonitas palavras.
Para mim também é um privilégio ser tua amiga.
Muitos beijinhos
Estes caso que é narrado pela Célia, só demonstra que esta atenta! Eu conheço alguns casos muito semelhantes. Estive alguns anos no terreno.... A miséria a fome o desemprego em Portugal, é real, muitos ainda não acreditam! Obrigado uma vez mais por ter a coragem de divulgar, e forças para o fazer. Eu digo-lhe, não é fácil! Tudo de bom para Célia e tb para todos os seus mais queridos.
ResponderEliminarCaro Aires,
ResponderEliminarMuito obrigada pela sua leitura do meu post e obrigada pela partilha da sua experiência e pelas suas simpáticas palavras e votos.
Um abraço,