A MULHER INVISÍVEL DE POMBAL
Célia Chamiça
(1º Prémio Literário António Gaspar Serrano – 2017 – Modalidade: Revelação)
Dedicado a todas as mulheres
invisíveis de todas as gerações de Pombal e de todo o Portugal
A mulher invisível não tem rosto,
É de Pombal mas poderia ser do mundo inteiro.
Apagaram-se-lhe as linhas pelas carícias não sentidas.
O seu corpo ficou invisível,
Na ausência de mãos que o percorressem com desejo.
As pernas apagaram-se, trémulas de insegurança,
Pela auto-estima esbatida em cada dia.
A mulher invisível não tem voz,
Clama pela Nossa Senhora de Belém
E fala-lhe das conversas não escutadas.
A mulher invisível elogia e agradece,
Mas nada escuta que a eleve ou reconforte.
A mulher invisível ama e entrega-se,
O que é acolhido como mera obrigação.
A mulher invisível
corre todo o dia,
Do Castelo, à
Torre do Relógio.
Cuida dos pais
velhinhos,
Enxuga os
narizes ranhosos,
Troca as
fraldas noite e dia,
Apanha o
autocarro cheia de pressa,
Chega ao
trabalho já exausta.
A mulher
invisível entra em casa sem ninguém a ver,
Faz sopas diferentes
para os filhos das várias idades,
Enxuga lágrimas
de queixas do infantário,
Ajuda os
filhos nos trabalhos da escola,
Prepara as
mochilas para o dia seguinte,
E deita os
filhos com uma serena história e um beijo,
Depois
revisita-se jovem nas Festas do Bodo… E chora.
A mulher
invisível não tem noite,
Levanta-se assim
que os filhos murmuram na cama,
Acalma os
temores nocturnos e os pesadelos,
Suaviza as
dores de dentes a nascer,
Alivia no seu
aconchego as cólicas dos bebés
E refresca
febrões em banheiras tépidas,
Rezando à
Senhora da Misericórdia que não esqueça.
A mulher
invisível prepara festas de anos,
Enche a casa
de animação e alegria,
Brinca com os
filhos e os amigos,
Cobre a mesa
com doces que comprou e preparou,
Enfeita de
balões e fantasia aquele dia especial.
No final
arruma tudo e a casa fica de novo acolhedora.
Mas nem
Pombal, nem todo o Portugal conhecem sua dor.
A mulher
invisível prepara o Natal da família,
Faz árvore de
natal e presépio,
Compra e
embrulha as prendas que encantam,
Cobre a mesa
com flores, velas e ternura,
Reúne todos os
familiares e sorri-lhes;
Estão todos
bonitos, só ela não teve tempo de se embelezar,
Será apenas um
vulto cinzento na Igreja Matriz.
A mulher
invisível acarinha primos e sobrinhos,
Conversa com familiares
que a deixaram em dificuldades,
Está sempre
pronta a acorrer a todos nos momentos difíceis,
Recebe e cuida
com todo o carinho os mais idosos
E ouve dizer
como é fantástica a sua família,
E que sorte
teve em ter uma família assim,
E apetece-lhe
encerrar-se na Prisão do Marquês.
A mulher
invisível estudou anos a fio com os seus filhos,
Que, crescidos,
já nada lembram desses momentos.
Fez-lhes as
máscaras de carnaval preferidas,
E percorreu
com eles as ruas incentivando-os aos festejos.
Preparou-lhes
os fatos das festas da escola,
De tempos já
esquecidos, como os seus,
Ainda jovem,
bela, alegre, com a sua fogaça.
A mulher
invisível era também profissional,
E em casa assegurava
o conforto da família.
Desdobrava-se
em papéis que a vida lhe conferia
E cada um a
requeria inteira.
A mulher
invisível sentia-se preenchida,
Mas não
reconhecida nem visível,
Uma mancha
ténue do Distrito de Leiria.
A mulher
invisível chorou mortes de entes queridos,
Consolou
dores, acalmou ânsias, concelebrou alegrias,
Deu o seu
peito para aconchego à família,
Mas tudo isso
já lá vai e quem viu esqueceu.
E chora
sozinha as suas próprias mágoas,
Escondida na
penumbra de vielas,
E é por ela
que choram as muralhas do castelo.
A mulher
invisível abandona-se à cama sem fôlego,
Mas insistem
para que se levante e recomponha.
Acham-na fraca
e piegas. Fica chata assim doente!
Porque estar
assim se nada tem de cuidado?
Para ela não
há lugar aos confortos no desalento.
Às meiguices e
atenções que tanto reconfortam,
Só a Senhora
da Misericórdia sorri à sua doçura.
A mulher
invisível desfez-se em destroços,
Sumiu-se-lhe a
luz na tristeza funda do olhar,
Foi-se-lhe o
viço das décadas vizinhas
E o que sobra dela
é já dispensável.
Tempos virão
em que o seu caixão se cobrirá de flores
E das lindas
palavras que nunca lhe foram ditas,
Em campa rasa,
jazendo anónima, como sempre foi.
Para mim representa mais do que um cativante poema...
ResponderEliminarLi com a alma e senti com o coração.
Absolutamente tocante, intenso e comovente...
Muito obrigada pelo belíssimo comentário. Só uma alma sensível o conseguiria fazer.
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