esperança renascida
Célia Chamiça
(Conto que recebeu o Prémio Literário Prosa Elias Cação Ribeiro 2017-
Junta de Freguesia de Quaios, Figueira da Foz)
Era manhã e as ondas
rebentavam numa espuma esbranquiçada erguendo castelos que se desfaziam no
horizonte azul e junto ao areal de Quiaios, Mariana depositava seus segredos,
anseios perdidos de sonhos vencidos.
Vencidos os primeiros
alvores atravessou a praia e, revigorada pelo ar marinho, retomou suas rotinas
familiares. Quem com ela privava dizia que era uma mulher decidida e divertida,
mas que não se deixava conhecer.
Levou a mãe ao lar de
dia da Figueira da Foz e depositou-lhe um beijo carinhoso na face:
_ Porta-te bem.
As auxiliares
achavam-lhe graça naquela sua despedida habitual à anciã de cabelos brancos
cuidadosamente presos num rolo macio na nuca que há mais de setenta décadas
abandonara a juventude.
A mãe era o único
vínculo que lhe restava de uma existência familiar perdida no tempo de que
tinha tantas saudades. Primeiro em casa de seus avós, vividos e criados em
Quiaios. Ele pescador, ela varina. A sua casa parecia ser um prolongamento do
mar salgado que entrava porta adentro com o seu constante cheiro a algas e a
sal.
Foi nesse ambiente,
entre redes de pesca estendidas a secar no quintal e a sardinhas a assar na
brasa com pimentões tirados da pequena horta que cercava a casa, que Mariana
soltou as primeiras gargalhadas, disse as primeiras palavras, foi mudando os
dentes e encurvando as formas, sempre sob o olhar atento e meigo de sua mãe,
Lúcia, muito cedo viúva de um jovem pescador temerário demasiado afoito perante
o mar agigantado que não admitia desafios de autoridade.
Fora na Figueira que
estudara, mas fora em Quiaios que se apaixonara.
Um amor terno e inocente
que lhe desvirginara o corpo e a alma, pois que inocente era ela apenas.
Durante pesadas semanas acumulou com a mágoa do desgosto amoroso o terror de
uma gravidez precoce resultante de uma relação não consentida, de um ilusório amor,
retribuído apenas pela ousadia de alguém que afirmava a sua masculinidade
coleccionando mulheres. Ele, uma vez mais, partiu para outras paragens depois
de ter garantido que não deixara qualquer semente germinar em qualquer ventre
fértil das muitas jovens que seduzira por ali. Não deixou saudades, apenas
revolta em memórias de sonhos desfeitos e dores sofridas que só o tempo
permitiria esbater.
Ainda desta vez tivera
sorte quem as desventurou dos seus amores juvenis. Valeu-lhe a vergonha que
aprisionou no segredo das suas conquistas os seus atos criminais que as havia convertido em vítimas. Bastaria que apenas uma delas
falasse, um só gesto de bravura e os pescadores revoltados ter-lhe-iam mostrado
da pior maneira o que sucede a quem violenta as suas filhas.
Mas, nem Mariana falou
nem qualquer das outras, embora cada uma, em meio tão pequeno, supusesse que a outras algo muito semelhante teria sucedido. Apenas Aurora, uma vigorosa jovem
ruiva, já casada de ventre cheio pelo mesmo aventureiro e com paternidade assumida pelo seu ingénuo
noivo, troava aos ventos e marés e a todos quantos a quisessem ouvir que o
macho com cio quisera tomá-la, que ante a sua recusa deixara bem claro que não
estava habituado a ser negado e que muitas havia que lhe tinham tomado já o
gosto e o não queriam largar. Aurora, omitindo convenientemente que ele lhe tomara o
leito de assalto, bramia que nem solteiras nem casadas se livravam das ousadias
do animal entesado, a quem maior ódio guardava ainda pelo repúdio deste relativo à inocente criança crescendo
no seu ventre e que o genuíno pai quisera exterminar.
De amor desiludido pelo
homem que amara, mas com um imenso amor pelo pequeno filho que lhe crescia nas
entranhas, numa resposta profunda ao seu anseio de maternidade, Aurora voltara a
admitir o seu anterior namorado, cuja simplicidade de pescador o sedutor
ridicularizara prometendo-lhe um futuro radioso na capital.
Profundamente amargurada
via agora com olhos de ver que caíra no mais antigo engano da história das
mulheres e lamentara ter afundado o seu amor de adolescente a desabrochar para
a vida mais que o mar poderoso de onde retirava o sustento diário. Felizmente que o pudera recuperar, outras não teriam tido a mesma sorte.
O pescador, que nunca
deixara morrer a sua paixão pela jovem Aurora, acolheu-a nos seus braços, secou-lhe as
lágrimas e salgou-lhe as feridas para as curar. Não quis saber se era ou não o genuíno pai da
criança, apenas que era o filho da mulher que tanto amava e voltara para ele,
por isso seria seu filho também. Confortada e fortalecida com tanto amor que a
enternecia e coração tão valoroso que admirava, a voz de Aurora ecoava soltando
raivas e rancores tais que começavam a tornar-se incómodos para o jovem aventureiro, cada
vez mais acossado socialmente, que acabou por partir de Quiaios, onde as
raparigas advertidas não caíam já na sua história e a sua virilidade e
segurança estavam cada vez mais ameaçadas.
Finalmente partira.
Sorrateiramente como um
ladrão.
E Quiaios rejubilara,
mas mais ainda Aurora que finalmente podia deixar morrer a sua raiva que a
envenenava por dentro.
Mariana nunca conseguira
que essa raiva emergisse. Sufocara-a por dentro antes que ela pudesse brotar
escaldante como a lava de um vulcão. Talvez a perda do pai, engolido pelo
abismo incomensurável do mar, tenha sido dor maior sepultando a outra sem
sequer a ter deixado emergir. Agora, com a mãe cada vez mais próxima de partir,
voltavam-lhe à memória farrapos desse primeiro e único amor de sonhos e ilusões
traídas e compreendia que fora ele quem lhe enfraquecera o poder de se libertar
e confiar, de se entregar ao amor e à paixão e de voltar a sonhar. Mas, não
conseguia sentir qualquer dor. Mais uma vez nem uma lágrima brotara, apenas o
anseio de sempre de ver o mar, de o olhar intensamente e lhe perguntar, apenas
e sempre perguntar:
_ Porquê? Meu Deus,
porquê?
Em resposta, apenas o
pipiar das gaivotas e o marulhar do mar. Nada de novo. A mesma resposta de
sempre desde há gerações e gerações de homens e mulheres que contemplam as
ondas e as interrogam cada um com suas existenciais dúvidas ou angústias.
Porém, nessa manhã sem saber porquê, Mariana viu as ondas vir e regressar numa
constância insistente em que nunca reparara. Olhou em redor e viu a Serra da
Boa Viagem coberta de vegetação verde, viçosa, cheia de vida. Sentiu uma
serenidade profunda que a comoveu e as lágrimas começaram a banhar-lhe a face,
primeiro surgindo lentas e tímidas e depois, entre os soluços, dando vazão ao
caudal imenso que brotava como a cascata da serra. Esgotada, deixou-se tombar
no areal e adormeceu profundamente.
_ Sente-se bem?
Olhou o homem que a
interpelava. Sentiu a roupa molhada e percorreu-a um arrepio.
_ Não devia voltar a
tentar isso.
Voltou a olhá-lo. O seu
olhar magoado pelo pranto tantos anos afogado dificultava-lhe a focagem.
_ A sua mãe precisa de
si.
Permanecia em silêncio
contemplando o seu interlocutor que custou a reconhecer no trajar
desportivo que envergava. Com dificuldade reconheceu o médico que há meses ficara colocado na
Figueira.
_ Além disso tem ainda
muito por viver, não queira deitar isso fora. Eu todos os dias luto para ajudar
a viver quem quer e a doença não deixa, por isso custa-me ainda mais ver uma
pessoa saudável recusar a vida que tantos querem ter e não podem.
Ele permanecia firme no
seu monólogo certo de que um desalento profundo conduzira a mulher a procurar um fim
trágico no mar. E, de repente. Mariana sorriu. Sorriu ante a perplexidade que era
o ser humano, uns fugindo do mar temendo a ameaça de morte que representava e
outros procurando-o para fugir à ameaça que sentiam que a vida para eles representava. Não
fora o caso dela nem numa situação nem na outra. Ou seria? O que a atrairia
sempre a horas-mortas para perto das vagas poderosas? Lembrou-se então da
pergunta que a fizera tombar no abismo das suas emoções encarceradas:
- Porquê?
O médico insistente
continuava procurando demovê-la do que acreditava terem sido ou serem ainda as
fúnebres intenções da mulher.
_ Há resposta para tudo.
Mariana sorriu uma vez
mais. Não, não havia resposta para tudo. Não havia resposta para o mal
gratuitamente causado aos outros. Ou talvez houvesse, mas ela não a conhecia,
porém, agora, finalmente, também ela a não queria conhecer. A procura dessa
resposta consumira já vários anos da sua vida. A catarse limpara-a da raiva e
da revolta surdas que lhe corroíam as entranhas e do ódio que a envenenava por
dentro. Sentiu-se leve, tão leve que quis mergulhar, limpar-se, arrastar de
si qualquer vestígio do passado. E, num rompante, erguendo-se, correu para as
vagas abraçando-as.
_ É louca. _ Gritou o médico, assustado, correndo para a impedir do que temia ser um
gesto desesperado.
_ Louca, mas finalmente
livre. Não tenha medo, deixe-me ir. Há uma resposta para tudo.
O homem viu no rosto de
Mariana a esperança renascida e sorrindo disse de si para si aliviado e feliz
por partilhar aquele momento tão íntimo, belo e especial da mulher:
_ E não é que há mesmo
uma resposta para tudo!
Célia Chamiça
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