O sentido consentido
Autora:
Célia Chamiça
Dedico este conto à minha irmã,
Aida Chamiça
Nota: Conto publicado em “A morte
Secreta dos sonhos roubados & outros contos”, vencedor me menção honrosa na
categoria internacional do IV Concurso Internacional de Contos Vicente Cardoso.
Editora Associação Santa-Rosence de Escritores, Brasil, pág. 47-53
O pequeno ser debatia-se com as suas
débeis forças para conseguir libertar-se do meio pantanoso em que se
movimentava respirando com cada vez mais dificuldades há uma semana. Finalmente
soltara-se daquelas membranas viscosas que o cobriam de lilás translúcido.
Olhou à sua volta e só via grandes cactos de grossos espinhos ameaçadores.
—
Que sítio estranho é este.
Onde me encontro? — Perguntou, olhando em volta com os seus olhos
de prisma cristalino.
No entanto, o pobre recém-nascido nada
via nem ouvia em seu redor que parecesse ter vida.
Os dias foram passando e seus vários
braços crescendo, as pernas alongadas iam-se robustecendo e as asas ganhavam
cores irisadas que brilhavam ainda mais com o sol e as gotas do orvalho.
O seu alimento eram pequenos seres
moluscosos que sobreviviam agarrados aos catos, como parasitas da pouca
humidade que estes ainda iam reservando nos seus interiores fibrosos.
Depois de muitas luas se sobreporem a
sóis ardentes, desistiu de procurar sons e movimentos em seu redor. Caiu então
num estado de desalento e tristeza que o enfraquecia cada vez mais.
Certo dia, porém, apareceu por perto,
quando menos esperava, um maravilhoso animal saltitante que quis logo travar
amizade com o nosso triste e solitário amigo.
— Quem és tu? — Perguntou-lhe curioso
o recém-chegado.
— Não sei quem sou nem para que vim
nascer neste sítio inóspito que só tem cardos e moluscos oportunistas. —
Respondeu com ar desalentado e quase sem olhar para o outro.
— Não queres saber quem eu sou?
Estando aqui tão sozinho não tens pelo menos um pouco de curiosidade por me
conhecer? — Perguntou o animal saltitante.
— Durante muito tempo sonhei encontrar
mais alguém com vida perto de mim. Agora já desisti. — Respondeu com voz lenta
e abatida.
— Como pode alguém desistir de
conhecer o que nunca viu nem ouviu? — Perguntava intrigado o saltitante olhando
o ser debilitado e abatido que se encontrava diante dos seus olhos.
Aquela interpelação acordou o espírito
adormecido e apático do ser de olhos em prisma e levou-o a dizer:
— Talvez tenhas razão. Estive
demasiado tempo sozinho e por isso me deixei abater. É tempo de acordar para a
vida. Quem és tu e como te chamas?
— Eu vim de um planeta vizinho,
chamado Girassol. É redondo, muito luminoso e colorido, mas quis vir conhecer
outros mundos e seres diferentes dos da minha espécie. Chamo-me GSol1. E tu?
Que ser és e como te chamas?
— Não sei quem sou nem como me chamo,
pois nunca me lembro de ter ouvido o meu nome. — Respondeu, triste.
— Temos, então, que te dar rapidamente
uma identidade. Ninguém pode viver sem saber quem é. — Disse GSol1.
— A tua identidade não me parece muito
famosa. Aposto que lá no teu planeta são todos GSol seguidos de números
diferentes.
— Estás a ser desagradável e
antipático, mas desculpo-te pois nunca aprendeste a viver em sociedade. — Disse
GSol1. — Como queres que te chame? Talvez Prisma? Não tem números, de que pelos
vistos não gostas, e coincide com o formato dos teus olhos de cristal.
— Como queiras GSol1. — Respondeu,
indiferente.
GSol1 ainda ficou uns tempos, mas
cansou-se com a atitude sempre negativa de Prisma e partiu em busca de outros
seres naquele planeta pantanoso que certamente teria outros habitantes bem mais
conversadores e dispostos a travar novas amizades.
Depois da partida de GSol1, Prisma
ficou de novo sozinho entre os cardos e os moluscos cegos e surdos que os
povoavam. A tristeza invadia-o cada vez mais e quase se arrependia de não ter
conseguido fazer com que GSol1 ficasse a viver ali por perto, mas a verdade era
que não lhe era nada fácil sair do seu comodismo. Se ao menos encontrasse um
sentido para ter nascido!
GSol1, com toda a sua vontade de
descoberta e dinamismo, percorreu o pequeno planeta pantanoso e espantou-se por
não encontrar nenhum outro ser vivo a não ser Prisma e os moluscos de que este
se alimentava. Decidiu-se, então, a regressar a Girassol, não sem antes se
despedir do único ser que tinha conhecido na curta viagem interplanetária que
empreendera. Não era um ser simpático, mas sempre era um ser vivo, e por isso
lhe merecia respeito.
Quando chegou perto de Prisma nem
queria acreditar no que via. Os olhos, antes cristalinos, estavam baços. Em
redor de Prisma encontravam-se tombadas as suas bonitas asas e o pobre ser
estava com os músculos dos braços e das pernas tombados com uma doentia
flacidez que não lhe permitia sequer erguer-se. Jazia tombado sobre um monte de
moluscos que não conseguiam escapar-se àquele corpo disforme de que a vida
parecia esvair-se a cada momento.
— Prisma! — Gritou, aflito, GSol1.
Prisma inclinou levemente a cabeça e
encolheu os ombros em sinal de profundo desalento.
— Para que vieste? Nada há aqui que
valha a pena ver. — Disse com voz fraca
— Vim levar-te comigo para minha casa.
Vamos, alimenta-te um pouco. Tens que ganhar forças para ir comigo para
Girassol. Vais ver que vais gostar. — Disse-lhe o gentil GSol1.
— Se te tivesse conhecido mais cedo,
talvez tivesse tido tempo de aprender contigo porque és tão bem-disposto e
simpático, mesmo com quem não o é para ti. Agora é tarde demais. Vai-te embora
e deixa-me neste miserável sítio desértico. — Respondeu.
— Nem pensar. Nunca abandonei ninguém
à sua solidão e vazio e não hás-de ser o primeiro a quem isso vai suceder. Não
é por acaso que me chamo GSol1.
— É tarde para saber. Não vês que
desfaleço?
GSol1 bem via que sim. De um salto
pôs-se junto de Prisma e elevando aquele corpo estranho, tão diferente do seu,
encostou-o a si e envolveu-o com os seus vários braços cobertos de penugem
macia e quente. Em breve o sentiu aquecer. Pegou numa mão cheia de moluscos,
que a si o repugnavam, e deu-lhos a comer lentamente. Depois, tirou de uma
bolsa que trazia consigo várias pétalas de girassol e espremeu o líquido para
dentro do orifício bucal de Prisma.
A pouco e pouco sentiu que as forças
voltavam ao ser que o rejeitara de forma tão agreste.
Durante vários dias GSol1 alimentou e
cuidou de Prisma sem deste ouvir uma palavra, pois entrara num estado de
debilidade após os primeiros alimentos que tomava depois de tantos dias de
jejum. Mas o seu corpo absorveu-os lentamente e gradualmente foi retemperando
forças.
Nunca soube se foi a seiva das pétalas
ou as histórias de Girassol que o retemperaram, pois GSol1 ia contando baixinho
tanta coisa daquele planeta de onde viera e dos seus felizes habitantes que
quase lhe fez ter vontade de os conhecer.
Um dia, dormia GSol1 profundamente,
exausto pelo cansaço de tanto cuidar daquele ser diferente, que apesar disso,
não quisera abandonar, que nem deu por Prisma ter acordado. Sentiu, então, um
movimento leve que não conhecia. Prisma enlaçara-o também a ele com os seus
vários braços e embalava-o docemente com uma canção suave e terna.
— Que canção é essa? — Perguntou
estupefacto.
— É a canção que minha mãe me cantava
quando me veio pousar no pântano para nascer.
— E nunca mais a viste?
— Suponho que um vulcão destruiu toda
a vegetação e seres e só fiquei eu, os cardos e os moluscos. Como vez, não faz
sentido eu ter nascido. — Respondeu Prisma, numa triste melancolia.
— Então não faz? Agora compreendo
tudo. — Disse entusiasmado GSoll. — O sentido é que eu sou o GSol1 porque sou o
rei do meu planeta e há muito procuro alguém para me ajudar a governar Girassol.
Sempre quis buscar alguém diferente, pois parece-me que todos temos a ganhar
com visões diferentes da nossa. Que te parece este sentido para a tua vida?
Aceitas ir comigo e ser conselheiro real em Girassol?
Prisma abriu os seus olhos de tal modo
que os cristais luziam intensamente.
— Controla essa alegria ou ainda me queimas
com toda essa luz. Anda da e traz alguns moluscos para a viagem.
Não sabemos como partiram nem como
chegaram, mas apenas que a viagem de ambos valeu a pena e que ficaram
inseparáveis amigos apesar das suas grandes diferenças de origens, físicas e de
personalidade.
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