Patilhas-e-Ventoinha
(Conto da autoria de Célia Chamiça agraciado com menção honrosa pelo
concurso “XXVI Jogos Florais do Algarve”, promovido pelo Racal Clube de Silves,
2006)
Dedico este conto ao meu pai Adelino Chamiça
A motorizada, arrastando
atrás de si uma nuvem de pó amarelecido como o tempo, acordava as serras
adormecidas. Patilhas-e-Ventoinha, de olhar perspicaz como o de um falcão, fez
soar a corneta assim que avistou as primeiras casas da aldeia.
Nas hortas, os camponeses
trocaram as enxadas pela expectativa de uma carta vinda de longe. Uma carta que
eles não saberiam ler, mas que o carteiro lhes leria enquanto se refrescava com
uns copos de tinto.
Nem todos abandonavam a
lavoura ao som da corneta, outros havia que preferiam deixar-se ficar a ter que
enfrentar o vazio de ninguém lhes ter enviado uma palavra. Relações cortadas
com filhos distantes, mais ligados agora às suas mulheres que aos seus pais,
doíam mais na presença da festividade dos outros ante as notícias de mais um
neto nascido ou mais uma visita anunciada para o Natal ou para as férias de
Verão.
Patilhas-e-Ventoinha era
assim conhecido pela penugem lateral que lhe cercava os ouvidos e sua
associação com a série radiofónica de carácter humorístico muito apreciada na
época. Só ele desconhecia que assim era chamado, de resto todas as aldeias que
visitava para recolher e distribuir correspondência estavam ao corrente desta
sua identidade paralela.
-
Nada hoje, Sr. Henrique?
-
Nada, Ti António.
Henrique era o nome
oficial do carteiro e só utilizado como vocativo. Na sua ausência, para se
referirem a ele, diziam simplesmente o carteiro ou o Patilhas-e-Ventoinha.
Ti António não recebera
nunca uma única carta, no entanto, não havia dia de semana que não fosse aguardar
a chegada do carteiro. Sentado num tosco banco de pedra, junto ao marco
vermelho onde podiam ser depositadas cartas já previamente seladas e que seriam
depois transportadas para a estação dos CTT na mala castanha de cabedal que o
Carteiro levaria a tiracolo na sua motorizada.
Toda a gente sabia que
ninguém escreveria a ti António pois este era solteiro, nunca tivera familiares
emigrados e não se lhe conheciam apaixonadas próximas nem distantes. Dir-se-ia
um eremita forçado a viver no meio da população que o aceitava com o seu
comportamento de velho lobo solitário. Mas, por incrível que pareça, um dia
chegou uma carta dirigida a Ti António. O próprio Patilhas-e-Ventoinha estava
tão surpreendido quando a viu na estação dos correios que a mirou e remirou bem
não fosse ele enganar-se e entregar a carta ao homem errado. Conheciam-se
muitas histórias de cartas trocadas e seus efeitos terríveis para quem as
recebeu, quem deixou de as receber e para o desgraçado que cometeu o lapso de
as entregar à pessoa errada e que pagou com a sua pele a falta de atenção ou o
excesso de álcool que a tal conduziram.
Chegado à aldeia, ainda
antes que Ti António tivesse tido tempo de se aproximar, gritou-lhe:
- Ti António, trago uma carta para si.
O homem olhou-o
estupefacto e perguntou:
-
Uma carta para mim? Não haverá aí engano? – perguntou com
voz tão estupefacta quanto segura de que não admitiria graçolas com assunto
para ele tão sério para o seu orgulho pessoal.
-
Uma carta para si. Então o senhor não é António dos
Santos, residente em Póvoas?
-
António dos Santos sou eu e aqui em Póvoas não há
outro.
-
Então é para si. E estendeu-lhe a carta num jeito de quem
espera do outro sinal para que a leia em voz alta, como era habitual para
qualquer analfabeto da aldeia.
No
entanto, Ti António agarrou a carta com as suas rudes mãos e guardou-a dobrada
no bolso da camisa.
Todos
intrigados observavam o comportamento do vizinho até que Ti Joaquina, famosa
pela sua curiosidade e atrevimento, lhe colocou a pergunta que todos queriam
fazer:
-
Então, António, não queres saber quem te escreve e o
que te diz? Tu não sabes ler, mas aqui o Sr. Henrique faz-te esse favor como
faz a todos nós, que Deus lhe pague por isso.
-
Querias que assim fosse, não querias? Tu estás mais
morta por saber o que lá diz que estarás quando fores enterrada. – E dizendo
isto, virou costas e foi usufruir da inesperada alegria da carta recebida na
privacidade do seu alpendre refrescado pela sombra de duas fortes trepadeiras.
No
domingo seguinte Ti António trajou a sua melhor roupa, pagou a um carro de
aluguer e foi ter com Patilhas-e-Ventoinha à vila onde este residia. O carteiro
ficou surpreso com a inédita visita pois em muitos anos de profissão nunca tal
sucedera.
-
O Sr. Henrique podia fazer o favor de me ler esta
carta?
-
Leio, pois Ti António, mas podia ter pedido logo quando
a recebeu, escusava de se acanhar, gastar dinheiro para vir aqui de carro de
aluguer e ficar este tempo todo ansioso para saber o que lá está escrito.
-
Pois sim, Sr. Henrique. Muito obrigado ao senhor que é
muito boa pessoa, mas eu quero a minha carta lida só para mim e com tempo para
a perceber bem que sou duro de ouvido e de entendimento. Agora diga-me, por
favor, quem me escreve?
-
Não diz, só diz a morada. Está aqui num carimbo em
cima.
-
E lá dentro não dirá de quem é? Abra por favor e leia.
O
carteiro sorriu. Com toda a solenidade que o momento requeria abriu o
sobrescrito, desdobrou a carta e disse:
-
É de um Teodoro Damas.
-
Teodoro Damas? Não conheço.
-
Diz aqui no fim da carta que é director de qualquer
coisa que está escrito em estrangeiro, por isso não percebo. Deve ser coisa de
emigrantes, vão para fora, começam a falar estrangeiro quando cá vêm e depois
acham que os que cá ficaram têm obrigação de os compreender.
-
Leia, leia, Sr. Henrique, se faz favor. - Pediu Ti
António já não aguentando mais tanta espera.
-
Cá vai, então:
“Estimado
Sr. António dos Santos,
Somos
uma empresa de estudos de mercado que tenciona recolher dados para um nosso
cliente que pretende abrir uma filial no Concelho a que pertence a sua
residência. Para podermos dar ao nosso cliente a informação necessária para servir
bem os habitantes da zona seleccionámos um conjunto de pessoas, entre as quais
o senhor se encontra e a quem enviamos um questionário que agradecemos que
preencha e nos devolva. A sua participação não terá qualquer custo pois o
questionário poderá ser-nos enviado num envelope pré-franquiado que aqui
enviamos para esse efeito.
Agradecemos
antecipadamente a sua resposta pois a sua colaboração é muito importante para
nós.
Com os
melhores cumprimentos,
Teodoro
Damas
Director
de Sondagens da Markinvest”
Ti
António nem queria acreditar no que ouvia. A carta era mesmo para ele, dizia
que o estimava, que queriam uma resposta dele e até pagavam o selo para ele
escrever na volta do correio que a resposta dele era muito importante. Ficou em
silêncio a saborear as palavras ouvidas e quando o quebrou foi para dizer:
-
Agora, Sr. Henrique, se não for abusar da sua
paciência, pedia-lhe outro favor.
-
Ó homem, quer que eu escreva a resposta, pois claro,
faço isso aos outros não lhe ia fazer a si porquê? É com todo o gosto. – Disse
o carteiro satisfeito por partilhar a alegria do homem que sempre esperara em
vão qualquer carta até à chegada daquela.
-
Não, Sr. Henrique, não é isso. Eu não vou responder
porque nem sei o que havia de dizer, quero é pedir-lhe que depois de amanhã,
quando for fazer a sua volta lá a Póvoas, não se desmanche quando eu lhe pedir
para ler a minha carta. É que eu vou colá-la outra vez e depois peço-lhe para a
ler à frente de todos. Ficam assim a saber que sempre há quem me escreva e
queira carta minha de volta.
Patilhas-e-Ventoinha
firmou o acordo com uma sólida palmada nas costas de Ti António e, quando
chegou o momento, leu em voz alta e o mais clara possível a carta cujo conteúdo
tanto orgulhava o seu destinatário.
Todos
escutavam estupefactos a carta especial que António recebera.
-
Então, Ti António? Tardou, mas arrecadou. Aquilo é que
é uma carta! Quem me dera que os meus me soubessem escrever palavras tão
bonitas, mas eles coitados, poucos estudos fizeram.
Desde a
inesperada carta ficara uma cumplicidade especial entre o carteiro e Ti
António. Curiosamente, este último nunca mais sentira necessidade de perguntar
se havia carta para ele, deixou mesmo de esperar doentiamente a chegada do
alforge de cabedal suado que quase de certo nada trazia para si. No entanto, de
tempos a tempos, sentado no mesmo banco junto ao marco vermelho, aguardava o
carteiro e dizia:
-
Sr. Henrique, venha à minha adega molhar o bico e
apertar o dente num bom enchido que a vida não é só feita de trazer e levar
cartas.
-
Essa é uma grande verdade Ti António, vamos lá então.
Célia Chamiça
2006
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