“Patilhas e Ventoinha”
Memórias de um carteiro
Memórias de um carteiro
Do Roqueiro à Silvosa
Nota da autora, Célia Chamiça:
Agradeço a todos os elementos da Casa da Cultura de Oleiros que participaram nesta peça como actores, em especial à Dra Ana Luzia Martins, bem como à encenadora, à cenógrafa e aos divulgadores da peça todo o empenho e dedicação que tornaram possível a representação desta peça de teatro, no Auditório da Santa Casa da Misericórdia de Oleiros, no dia 29 de dezembro de 2012.
Agradeço ainda ao Sr. Presidente da Câmara Municipal de Oleiros ter apoiado esta iniciativa cultural, integrada no Ano Europeu do Envelhecimento Activo, que visou colocar em relevo a cultura de uma bonita região de Portugal e lembrar a importância que os carteiros têm tido ao quebrar o isolamento das muitas aldeias dispersas pelos vários concelhos do país.
Esta peça foi baseada no conto "Patilhas e Ventoinha", que dediquei ao meu pai, Adelino Chamiça. O referido conto foi agraciado com menção honrosa nos XXVI Jogos Florais do Algarve, organizados pelo Racal Clube, com o apoio das Câmaras Municipais de Albufeira e Silves, da Direcção Regional da Cultura do Algarve e das Juntas de Freguesia de Paderne e de Silves.
Esta peça foi baseada no conto "Patilhas e Ventoinha", que dediquei ao meu pai, Adelino Chamiça. O referido conto foi agraciado com menção honrosa nos XXVI Jogos Florais do Algarve, organizados pelo Racal Clube, com o apoio das Câmaras Municipais de Albufeira e Silves, da Direcção Regional da Cultura do Algarve e das Juntas de Freguesia de Paderne e de Silves.
Personagens:
·
Carteiro – Sr. Henrique – Patilhas e
Ventoinha – Zé Carteiro
·
Ti António – Ana
·
Ti Joaquina – Telma
·
Ti Zé – Sofia
·
Ti Jacinta – Sara
·
Laurinda Muda - Humberto
·
A falecida mulher do Ti António chama-se
Ludovina
I
ACTO
Os agricultores andam a
tratar a terra e a semear os cereais.
Também podem simular a
apanha da azeitona.
·
Ti Zé e Ti Jacinta andam a “vergastar” e
a apanhar a azeitona;
·
Ti António anda a arrasar a terra e
assobia;
·
Ti Joaquina anda com um saco a espalhar
o cereal na terra.
Enquanto trabalham vão
cantando “Milho grosso”. Aproxima-se a Laurinda Muda com um cesto à cabeça com
a merenda. Coloca-a no chão, desdobra a toalha e gesticula emitindo sons a
chamar o pessoal para a merenda e, então:
Entra a mota no
auditório e o carteiro começa a buzinar ao povo.
O Ti Zé e a Ti Joaquina
escolhem a azeitona sentados no chão.
A Ti Joaquina, assim
que ouve a buzina do carteiro, diz bem alto:
Ti Joaquina
– Olhem, vem aí o carteiro, o Patilhas e Ventoinha. O raça do home, parece que
nasceu p’ra alcunha que o povo lhe prantou!! As patilhas peludas nas ventas e a
ventoinha do outro que nos faz rir nas paródias da rádio, assentam mesmo bem no
Ti Henrique.
Ti Jacinta
– Olha lá oh Joaquina, deve vir carregado de boas novas.
Ti Joaquina
– Bem, novas só para quem as tem. Ó Jacinta atão ê nãm te contei da zanga quê
tive com a minha nora? Pôs o meu filho sem me escrever anos a fio. Mas odepois,
pusemos a mágoa para trás das costas e, agora, que Deus seja louvado, de vez em
quando lá vem uma cartinha de França.
O carteiro continua a
buzinar e os agricultores vão-se aproximando da caixa do correio presa na
parede de uma casa construída de pedra. O carteiro estaciona a mota em baixo do
palco e sobe a escadaria lateral esquerda, dirigindo-se aos lavradores.
Os agricultores
exclamam em voz bem alta:
Ti Joaquina
– Ora viva Sr. Henrique!
Ti Zé
– Bom dia Sr. Carteiro!
Ti Jacinta
– Que seja louvada a sua visita!
Carteiro
– Ora bom dia a todos, bom dia, bom dia!
Ti António
– (com voz triste) Oh Sr. Henrique, para mim não traz nada como sempre. Que
tristeza de vida, não tenho parentes que queiram saber de mim. Olhe, ó Sr.
Henrique, digo-lhe uma coisa, esta tristeza de vida e esta solidão enterram um
home bem lá no fundo, mesmo junto à cova da terra que me há-de comer.
Ti Jacinta
– Ó Ti Tonho! Ó home de Deus! Não pense assim, a cova ainda vem longe home.
Ti Joaquina –
É berdade, ó Ti Tonho, há males bem piores. Atão bomecê ainda tem saúde pra
cuidar de si, do seu rebanho (emitir som de ovelhas) e das parcelitas de terra.
Ti António
– Ó Joaquina, falas a berdade. Mas sabes, um home, quando é home a valer, sonha
mais do que a comida que leva a boca em cada dia, e com a almofada onde deita a
cabeça. Tas-me a entender, (fala alto) uma carta de alguém é sempre uma carta,
traga novas ou apenas velhas palabras, aconchega o espírito de quem a recebe.
Carteiro
– Ó meus amigos, deixem-se lá de conversas que eu hoje trago novidades e das
boas. Ao fim de 30 anos de carteiro, nunca tal tinha acontecido! Ó Ti António,
hoje trago uma carta para si.
O Ti António olha muito
admirado para o carteiro.
Os agricultores começam
a murmurar coisas aos ouvidos uns dos outros.
A Laurinda Muda começa
aos saltos, a emitir sons e a bater palmas.
Ti António
– O que disse Sr. Henrique? Uma carta p’ra mim? Ó o senhor está a gozar c’a
minha pessoa e olhe q’ê não gosto nada disso, ó há aí engano… Nuca na bida
ninguém me escreveu palabra alguma. Não espero carta de ninguém como nunca
esperei.
Laurinda Muda
– Faz sons do género úúúúúúúú!
Ti António
– Ó Laurinda, tás aqui, tás ali! Cala-te mulher! Olhe ó Sr. Henrique, se venho
ter consigo quando o senhor vem aqui à Silvosa, pra já ali cheira a mijo que a
Laurinda acabou de verter as águas (aponta com o dedo) e odespois é para não
ficar como um espantaralho especado e de boca aberta ali no campo sozinho, ou
atão como um morto vivo, enquanto todos festejam com alegria as suas cartas.
Ti Zé
– Oh Tonho, tem lá calma, olha o tê coração que enfraquece. Olha que cá na
minha ideia o Sr. Henrique nunca se engana nas cartas, ele nã é burro como a
gente.
Carteiro
– Ó Ti António, acredite em mim, desta vez trago mesmo uma carta para si e não
é engano nenhum. Então o senhor não é o António dos Santos, residente em
Silvosa, freguesia de Sarnadas de São Simão, concelho de Oleiros?
Ti António
– Bom, vamos lá ver! António dos Santos, sou eu, e aqui na Silvosa não há outro
desde que há trinta anos se finou o mê avô, António dos Santos, de um aperto
que lhe deu no coração.
Ti Jacinta
– Ah!!! O sê avô foi-se do coração? Ah!!! Não sabia, coitado do home…
A Laurinda muda levanta
as mãos ao céu e emite sons parecidos com “ave, ave, ave…”
Carteiro
– Pois é Ti António, esta carta é mesmo para si.
Ti António
– Atão oh Sr. Henrique, não virá a carta atrasada trinta anos para o mê avô?
Algum neto nascido noutras bandas, fora do conhecimento da minha avó e dos mês
pais? Oh Sr. Henrique, olhe co mê avô, era home pra coisas dessas. Só se lhe
acalmou o calor pelas fêmeas quando o coração mais se não aguentou e se finou!
Está-me a perceber?
Todos os agricultores
em coro – Deus o tenha em descanso! Ámen!
A Laurinda muda põe bem
alto as mãos postas para o céu e murmura sons.
Ti Joaquina
– Oh Tonho, o senhor não terá alguma fêmea aqui pelas bandas?
Ti António
– Oh sua deslimbida (atrevida), cala breve (rápido) esse gragomil (garganta),
sua chocalheira (alcoviteira). Ainda sou e sempre fui fiel à minha Ludovina,
que Deus a tenha lá com saúde, coitada, sofria de ostereosclerose!
A Laurinda muda simula
querer dar socos ao Ti António por ele estar a mentir.
Carteiro
– Meus amigos, meus amigos! Vamos lá acalmar os ânimos, porque desânimos temos
muitos na vida! Oh Ti António, a carta é para si, o que ela diz não sei, porque
só o senhor a pode abrir, mas atrasada não anda porque o carimbo dos correios
tem dois dias.
O carteiro estende a
carta ao Ti António e este recebe-a. Olha bem para ela, dobra-a e coloca-a no
bolso da camisa.
O carteiro coça a testa
de admiração, porque normalmente as cartas são-lhe entregues para ele ler e
escrever a resposta de volta no correio.
Os agricultores
encolhem os ombros uns aos outros como sinal de admiração.
A Ti Joaquina, famosa
pela sua curiosidade, não hesita e pergunta:
Ti Joaquina
– Atão Ti Tonho, não queres saber quem te escreve e o que diz? Vá lá, dá a
carta a ler ao Sr. Henrique. Tu não sabes de leitura, mas o nosso carteiro
faz-te esse favor como faz a todos nós. Que o Grandioso Deus lhe pague por
isso!
A Laurinda muda de mãos
postas para o céu, murmura sons.
Ti Joaquina
– (impaciente) Oh home, estás-me a enervar, dá lá a carta a ler!
Ti António
– Que diacho, c’uns diabos, oh mulher, mete-te na tua vida! Isso era o que tu
querias oh chocalheira! Estás mais morta por saber o que a carta diz do que
estarás quando fores enterrada! Fica a saber que esta carta é só para mim,
ninguém tem nada que saber o que ela diz, pois só a mim diz respeito. Guarda
essa coscuvilhice e enfia-a de baixo desse molho de mato (aponta para um molho
de mato que está no cenário)
O Ti António afasta-se
todo orgulhoso com a carta, enquanto os restantes ficam todos intrigados e a
murmurar uns com os outros.
Ti Joaquina
– Olha qu’esta!!! O home não está bvom da cabeça… Ai não está não!!! Diabos que
o levem!
Segue-se um separador
de som e de luz, indicando o pôr do sol.
Fecha o pano
Fim do 1º acto
II ACTO
CANTA O GALO ---
(FAIXA 4)--- AMANHECER
ABRE-SE O PANO
No
dia seguinte era feriado, e então, o Ti António trajou a sua melhor roupa.
Abre-se
o pano e o Ti António aparece a dirigir-se à casa do Srº Henrique. O Cenário
inclui uma tabuleta a indicar a localidade de Roqueiro, 1 café à entrada da
população e a casa do Patilhas e Ventoinha com trepadeiras e videiras.
O
Ti António, vem feliz, mas também muito envergonhado. Depara com o Srº Henrique
sentado à entrada de casa e diz, meio a gaguejar:
Ti
António – Bem (e
coça a testa), bom dia Srº Henrique. Atão, bomecê desculpe-me por esta invasão
sem aviso, mas como hoje é feriado, e a minha ideia me disse que o senhor
estaria por aqui, behno pedir-lhe um fabor…
Carteiro – Então, ora essa! Ó Ti António
esteja à vontade. Mas olhe lá, é alguma coisa de grave?
Ti
António – Nã, nã
Srº Henrique, sabe, eu queria que bomecê me lesse esta carta (e entrega o
envelope ainda fechado ao carteiro).
O
carteiro muito bem disposto dá palmadas nas costas de Ti António e diz:
Carteiro
– Claro que leio Ti António!!!! Com
todo o gosto!!!!
Mas
o senhor ontem podia-me ter pedido para eu ler o que ela dizia, não era preciso
acanhar-se. Esta ansiedade toda, não faz bem ao seu coração, ó Ti António.
Ti
António coça o queixo, ainda envergonhado e diz:
Ti
António – Ó Srº
Henrique, fala berdade, mas sabe o que é, eu quero esta carta lida só para mim,
sem murmurinhos, quê nã entendo as coisas logo à primeira. E mais, se bêm aí
segredos ou enredos sobre a minha família, sou eu e só eu o primeiro a saber.
Odespois os assuntos caem na boca daquela Joaquina, e prontos, a aldeia fica
toda contaminada com a língua dela!
Mas
atão, ouça lá ó Srº Henrique, quem é que me escreve?
Carteiro – Olhe, sentemo-nos aqui nestes
tropeços, para estarmos mais à vontade.
Então
Ti António, aqui no envelope está escrito assim “Estudos de Marketing”.
Ti
António, espreita mais de perto o envelope (pode até levantar-se e debruçar-se
sobre o carteiro) e diz:
Ti
António – Mas que
raio!!! Nã conheço ninguém com esse nome. Mas, ó Srº Henrique, abra lá brebe a
carta que quero saber o que me dizem. (coça a cabeça) Que Deus me dê força para
ouvir qualquer desgraça…
Estão
os dois sentados nos tropeços, e de rompante, aparece o Ti Zé com uma saca às
costas e fica intrigado por ver ali o Ti António.
Ti
Zé – Estarei a ber bem?! Ó Ti Tonho, o
que faz por aqui?!
Ti
António – Ó Srº
Henrique; esconda-me essa carta (murmura baixinho). Então à Zé, já agora, não
me digas que nã posso estar aqui?!
Carteiro – Olhe ó Ti Zé, (e também
embaraçado, coça a cabeça) já estávamos a despedir-nos, mas vou buscar um
tropeço para também se sentar…
Ti
Zé – Pois…descansava as pernas…
Ti
António – Olha lá
á Zé, nã tens que fazer, atã agora!!! Vai lá dar mais uma voltinha pelo
Roqueiro. Vá, vai lá, raspa!
Ti
Zé – O raio do home!!! Bem diz a
Joaquina que ele nã anda bem!!! Que coisa, é doido!
O
Carteiro fica sem saber o que dizer, e o Ti António, ansioso e já desenrascado da situação
embaraçosa, diz:
Ti
António – Ó Srº
Henrique, tá a ber, o Ti Zé já queria tirar nabos da púcara, mas birei-lhe as
boltas! Bá agora leia, leia isso que já
estou desgastadinho de tanta espera!!!
Carteiro – Então vamos lá (e abre o
envelope). Olhe ti António, quem lhe escreve é um tal “ Teodoro Damas”…
Ti
António coça a cabeça intrigado…
Ti
António –
Raios!!! Que farfalhada é esta!!!
Tiotónio quê ? Dantes??? Dantes do quê?
Carteiro – Não é Teotónio, é Teodoro.
T-E-O-D-O-R-O D-A-M-A-S ! (alto)
Ti
António – Ó Srº
Henrique, ajude-me lá a perceber isto… Estou a ficar outra vez desgastadinho do
mê coração.
Carteiro – Calma, calma Ti António. Eu estou
aqui e estarei sempre para o ajudar.
Aqui
no fim da carta diz que esse tal T-E-O-D-O-R-O
D-A-M-A-S é director de “Marketing”, e depois está escrito “Estudos de
Mercado”. Isto diz-lhe alguma coisa, Ti António?
Ti
António –
(desaperta botões da camisa com os nervos). Atão só se for algum feirante ali
do mercado d’Oleiros às terças-feiras.
Bá,
bá, ó Srº Henrique, leia, leia tudo de uma vez, quê já nã aguento, estou
árrasca…estou todo desgastadinho!!!
Carteiro – Está bem Ti António, vou ler toda
a carta bem devagar para ver se percebemos o que lhe querem.
O
CARTEIRO LÊ A CARTA
Carteiro – Então, cá vai, diz assim:
“Estimado Sr. António dos Santos,
Somos uma empresa de estudos de
mercado que tenciona recolher dados para um nosso cliente que pretende abrir
uma filial no Concelho a que pertence a sua residência.
Para podermos dar ao nosso cliente a
informação necessária para servir bem os habitantes da zona seleccionámos um
conjunto de pessoas, entre as quais o senhor, e a quem enviamos um questionário
que agradecemos que preencha e nos devolva.
A sua participação não terá qualquer
custo, pois o questionário poderá ser-nos enviado num envelope pré-franquiado
que aqui remetemos para esse efeito.
Este questionário foi elaborado
pelos nossos especialistas a pensar em si. Com as perguntas que lhe colocamos
pretendemos conhecer o seu estilo de vida que é do maior interesse para a nossa
empresa.
Queremos servi-lo melhor, e para
isso precisamos de conhecer as suas atividades, os seus hábitos, as suas
preferências e o que pensa dos nossos produtos criados a pensar nos
agricultores e suas famílias.
Ao responder às perguntas colocadas
no questionário que acompanha esta carta, está a contribuir para que possamos
prestar-lhe a si, e aos cidadãos do concelho, um serviço de maior qualidade.
Ficaremos também muito gratos com
todas as opiniões que quiser ter a gentileza de nos enviar, bem como sugestões
que queira fazer-nos para o servirmos melhor e aos nossos clientes. As suas
ideias são a nossa fonte de inspiração, por isso estimamo-las como um bem
precioso e iremos refletir sobre a possibilidade e forma de as pôr em prática.
Agradecemos antecipadamente a sua
resposta, pois a sua colaboração é muito importante para nós.
Nós contamos consigo. Conte
connosco.
Com os melhores cumprimentos,
Teodoro Damas
Director de Marketing da Markinvest”
No
final de ouvir toda a leitura, o Ti António, muito comovido, enxuga lágrimas de
alegria a um lenço de pano que retira do bolso das calças.
O
Carteiro dá uma palmada nas costas de Ti António, faz um pequeno silêncio e diz:
Carteiro – Olhe, ti António, como diz na
carta, tem aqui outra folha com perguntas e linhas para escrever a resposta; é
o questionário, percebe.
Ti
António – Agora,
SrºHenrique, quero pedir-lhe ainda outro fabor, q’é muito importante para mim.
Carteiro – Já sei, quer que eu escreva a
resposta, não é? Ó Homem é claro que o faço, se ajudo os outros, também o ajudo
a si. Vamos fazer assim, eu leio-lhe as perguntas e o Ti António vai
respondendo para eu escrever aqui no papel.
Ti
António – Ó
SrºHenrique, é isso, mas não é só isso… Pode dar-me a carta se fizer o fabor.(o
carteiro dá-lhe a carta)
Sabe,
tantos anos sem receber uma carta, esta é como ouro, e cá no meu entendimento,
vai mudar o meu destino.
Então,
bamos fazer assim, eu “Colo aqui o envelope” (cospe para o envelope). Se
não for abusar da sua bondade, amanhã, quando for à aldeia da Silvosa lebar as
cartas, eu peço-lhe para ler a minha à frente de todos. Quero ber a cara deles
quando souberem que há quem me escreva e queira carta minha de volta.
O
Ti António faz uma pausa para depois dizer:
Ti
António – Á ó Sr.
Henrique, e já agora, faz os assentos no papel do que eu digo também à frente
de todos. Eu fico em paz com o meu destino. Já recebi e já mandei carta a
alguém e cá no mê entendimento, vou deixar de me sentir posto de parte pelo
mundo.
O
carteiro dá uma palmada nas costas de Ti António, e diz:
Carteiro
– Claro, claro Ti António, amanhã
farei o que me pede. Olhe, e agora vamos espetar o dente neste naco de pão com
chouriço da última matança e beber um copito de vinho novo.
FECHA O PANO
CANTAR DA CORUJA ---
FAIXA 3--- ANOITECER
FIM DO 2ºACTO
III ACTO
CANTA O GALO ---FAIXA
4--- Abre-se o Pano
Os
aldeãos estão todos sentados em tropeços de cortiça no centro do palco (cenário
da Silvosa).
Em
posição central, está sentado o carteiro a ler uma carta vinda de França para
Ti Jacinta e Ti Zé.
Carteiro – “…então, do vosso filho que vos
ama muito, um abraço de saudade… e em princípio irei aí pela matança do porco…
Ti
Zé e Ti Jacinta abraçam-se de felicidade.
Ti
Jacinta – Ah meu
rico filho, que bom, vem p’la matança do porco.
Ti
Zé – Mas ó Jacinta, tantas saudades e
ainda temos de esperar pela matança…ai jasus!!!
Ti
António – Atão ó
Ti Zé, “odespois do Natal é só um saltinho de pardal”, bai ber, os dias passam
a fugir…
O
Ti António levanta-se do tropeço, mostrando muita ansiedade e também muita alegria
e com a carta junto ao peito, diz:
Ti
António – Ó Sr.
Henrique, bamos lá então à minha carta, bá lá então…
Ti
Zé – Ó Ti Tonho, atão, a carta sempre
aparece…
Carteiro - (abre a carta e lê-a) Ora Ti
António, então a sua carta diz assim:
“Estimado Sr. António dos Santos,
Somos uma empresa de estudos de
mercado que tenciona recolher dados para um nosso cliente que pretende abrir
uma filial no Concelho a que pertence a sua residência.
Para podermos dar ao nosso cliente a
informação necessária para servir bem os habitantes da zona seleccionámos um
conjunto de pessoas, entre as quais o senhor, e a quem enviamos um questionário
que agradecemos que preencha e nos devolva.
A sua participação não terá qualquer
custo, pois o questionário poderá ser-nos enviado num envelope pré-franquiado
que aqui remetemos para esse efeito.
Este questionário foi elaborado
pelos nossos especialistas a pensar em si. Com as perguntas que lhe colocamos
pretendemos conhecer o seu estilo de vida que é do maior interesse para a nossa
empresa.
Queremos servi-lo melhor, e para
isso precisamos de conhecer as suas atividades, os seus hábitos, as suas
preferências e o que pensa dos nossos produtos criados a pensar nos
agricultores e suas famílias.
Ao responder às perguntas colocadas
no questionário que acompanha esta carta, está a contribuir para que possamos
prestar-lhe a si, e aos cidadãos do concelho, um serviço de maior qualidade.
Ficaremos também muito gratos com
todas as opiniões que quiser ter a gentileza de nos enviar, bem como sugestões
que queira fazer-nos para o servirmos melhor e aos nossos clientes. As suas
ideias são a nossa fonte de inspiração, por isso estimamo-las como um bem
precioso e iremos refletir sobre a possibilidade e forma de as pôr em prática.
Agradecemos antecipadamente a sua
resposta, pois a sua colaboração é muito importante para nós.
Nós contamos consigo. Conte
connosco.
Com os melhores cumprimentos,
Teodoro Damas
Director de Marketing da Markinvest”
NOTA-
O Carteiro na leitura da carta é interrompido várias vezes pelos agricultores,
que fruto do improviso vão manifestando sugestões e comentários.
O
Carteiro vai apaziguando os ânimos para que o bem estar entre todos se
mantenha.
Quando
o carteiro termina a leitura da carta, a Ti Joaquina, comovida, limpa com o avental lágrimas
de alegria e diz:
Ti
Joaquina – Atã
Tonho!? Tardou, mas arrecadou. Aquilo é que é uma carta. Quem me dera que os
mês me prantassem no papel palabras tão bonitas, mas eles, coitados, poucos
estudos fizeram.
Ó
Tonho, quem lhe escrebeu, é um grande senhor. Olha que quem pranta no papel
palabras assim, é gente que nã é do pobo, burro como nós. E atão o home até diz
que te manda selo, pr’a nã gastares do tê bolso. Essa é grande ó Tonho.
Ti
Zé – Olha q’esta. De nós nã quis ele
saber. Escolheu-o logo a si, bai lá agente perceber.
Ti
Joaquina – E digo
mais, esse home escrebe como gente que tem estudos, e nã com’agente que sempre
cabou terra e tratou do gado (som ovelhas). Cá nós só aprendemos aquelas letras
que era preciso para assinar o subsídio da Casa do Povo.
Ti
António – (muito
feliz e orgulhoso) A bida tem destas cosas ó Joqquina, a bida tem destas cosas.
Ora nos chobe em cima ora o sol nos enxuga e nos aquece o corpo e a alma.
Ó
Joaquina, nã podemos desanimar, poi como diziam os nossos avós; “depoi da tempestade bem a bonança”
O
Ti António, virando-se para o carteiro, diz com voz firme:
Ti
António – Sr. Henrique,
agradeço-lhe atão que prepare aí o papel e a lapizera, para eu responder aí às
perguntas que me fazem.
Carteiro – Vamos então a isso, Ti António.
Eu vou lendo as perguntas uma a uma, o Srº vai respondendo e eu ercrevo tudo no
papel.
Q.1.Que
idade tem?
Ti
António –
Credo!!! Que raio de pergunta bem a ser essa!?
Carteiro – Ó Ti António, não tem mal, diga
lá a sua idade.
Ti
António – Atão,
tenho 65 primaberas no corpo!
Q.2.
Qual é o seu sexo?
Ti
António – Se faço
sexo…que Deus me acuda, desde que a minha Ludovina se foi lá p’ra riba que nã
sei o que é isso.
Laurinda
muda – Emite sons e dá palmadas na testa
a insinuar que Ti Tonho está a mentir.
Carteiro – Ó ti António, é homem ou mulher?
Ti
António – Atão,
sou home, sou macho, atão que raio!!!
Q.3.
Qual é o seu estado civil?
Ti
António – Se
andei à civil…só na tropa!
Carteiro – Ai, Ai Ai. É viúvo não é?
Ti
António – Sim.
Sim. Ai!!! Pobre Ludovina que está lá riba sem mim!
Q.4.A
que ramo ou setor de actividade se dedica?
Ti
António – Ramo?
Atão ao ramo da olibera e às cobas da terra, à rusina, a amanhar o gado Som
ovelhas—FAIXA 6.
Carteiro – Então dedica-se à agricultura,
não é?
Ti
António – isso,
isso, prante agricultura que fica bem.
Q.5.O
que mais se produz no Concelho de Oleiros? E na sua Freguesia?
Ti
António – Atã já
disse, nós aqui, na Silvosa, Freguesia de Sarnadas de São Simão, Concelho de
Oleiros, fartamo-nos de laborar. Atã, é a rusina, a madêra, as coubes, as
patatas. Sei lá, odespois fazemos os quejitos do leite das cabritas Som Cabras ---
FAIXA 2, os enchidos e as carnes das matanças. É assim, semeamos no
berão, para podermos comer no imberno.
Q.6.
Sobre animação sócio-cultural, quer falar-nos de alguma festa da sua terra?
Ti
António – Festa…
Ora poi! Atão temos a Romaria de São Simão. Aquilo é que é festança. Com o
Padre adoramos o Santo na missa e precisão, odespois bailamos e comemos todo o
dia.
Q.7.
Guarda memória de alguns provérbios antigos? Se sim, refira-nos alguns.
Ti
António – Atã ó
Sr. Henrique, escreba aí:
-
“ Quem colhe a azeitona antes do Natal, deixa o azeite no olival”
-
“A auga de Janeiro bale dinheiro”
-
“Em janeiro arde o tojeiro e bai o porco
ao enxudeiro”
-
“Ninguém aponte falhas alheias com o dedo sujo”
Carteiro – Já chega Ti António, então e
superstições, sabe algumas?
Ti
António – Ó Srº
Henrique, diga lá a esses homes de estudo que com este assunto nã se brinca.
Ata aqui bai:
-
“Matar gatos nã dá sorte”
-
Nã se debe andar de noite na rua porque aparecem os lagrisomes, com muito pelo e muito feios”
-
“Borboletas a boar bem dizer mau passar”
(…)
Carteiro – Então Ti António, acredita nessas
palavras que disse?
Ti
António – Atã mas
tá claro. São e sempre serão ensinamentos de bida. Muita sabedoria, muita
experimência.
Q.10.Pode
descrever-nos algumas lendas do seu Concelho?
Ti
António – Claro
que posso. Atão ó Sr. Henrique, escreba aí?
Esta
é a história do Lagrisome:
Habia
homes que eram homes normais, mas muito magros. Nas noites de lua cheia
transformavam-se em bichos peludos. Era sempre o sétimo filho home.
Ata
eles saiam do pé das mulheres de noite, tirabam a roupa numa casa certa, e
andabam por lá, nas altas horas da noite.
Uma
bez a minha abo, oubiu de noite as portas a rugir e a minha abo pensaba que era
o mê pai c’a borracheira, mas era o bicho, o mê pai estaba na cama.
Aqui
na aldeia as pessoas lembram-se de muitos ruídos durante anoite, eram os
lagrisomes que aí andavam.
Odespois,
quando raiaba o dia, eles já tinham que estar deitadinhos ao pé das mulheres,
chegabam à cama enregelados. E prontos, mudaba-se o feitiço.
-
Atã, há também a história das bruxas, ó Srº Henrique, escreba, escreba:
Um
dia, o mê pai estaba a dormir e acordou a oubir os bois a bater com os cornos
nas paredes e no portão do curral. Houbia-se track, trock, track, trock.Som Bateria ---
FAIXA 1 O mê pai alebantou-se e foi ber o que era. Atão eram as
bruxas que andabam a bailar ao pé dos bois. O mê pai pegou num ferrão e cegou
uma, mas nã a descobriu, nã soube quem era.
Elas,
costumabam dançar também nos lagares e os espíritos malignos andabam com elas.
A
chefa delas era a bruxa refinada e ensinaba as danças às mais nobas. Aquilo
eram mulheres bem tronchudas, boazonas mesmo, e atão, dançabam, bailabam!
--
Odespois, aí nalgumas casas da aldeia habia também as máquinas da costura,
costurabam, costurabam, durante a noite e sem trapo. As tesouras faziam track,
track, track!
Ti
Joaquina – Ó Ti
Tonho, mas com o Novo Testasmento, o Nosso Senhor começou a pregar a sua
doutrina e esses rugidos e danças acabaram p’ra sempre. Ó Tonho, cá p’ra mim
quilo era o binho.
Ti
António – Canta:
Era o binho meu bem era o binho, era a coisa que eu mais adorava, só por morte
meu bem só por morte, só por morte eu o binho deixava. (E cantam todos os
agricultores)
Carteiro – Vá, Vá lá, vamos lá retomar a
leitura do questionário.
Ti
António, na carta pedem para descrever em algumas palavras como ocupa o seu dia
a dia.
Ti
António – Atão,
na terra. Lebanto-me e como a dejua. Odespois passo uma pinguita de auga p’las
faces e daí a brebe já estou aqui c’os meus bizinhos na agricultura. Fazemos
tudo juntos, nunca nos separamos.
Ti
Zé – Mentiroso!!! Atão ó Ti Tonho, o
que vai fazer à tarde para o celeiro?
Ti
António – Atão,
bou matar a lairona nos safolhos. Já agora!?
Ti
Joaquina – Pois,
pois, agora bou descobrir isto tudo. Atão ó Ti António dos Santo Home! O que
vai fazer a Laurinda muda também para o celeiro à tarde. Bejo-a pra lá passar a
abanar as saias Home!?
Ti
António – Todo
atrapalhado, não sabe o que fazer, esconde a cara com a boina, engasga-se, e
pede ajuda ao carteiro.
Carteiro – Bem, ouçam todos! O meu trabalho
aqui não são as coscuvilhices… (e fala alto) Ti António, quais são os momentos
da sua vida que mais recorda e tem saudade?
Ti
António – (Com
voz segura, levanta-se) Atão, todos os mementos que passei com a minha
Ludovina, sempre pobrezinhos, mas de muito amor. E odespois, aqui nestes meus
amigos, só tenho a dizer que sã o mê amparo.
A
Laurinda muda não pára quieta no tropeço…
Carteiro – Ora então, a minha missão para
convosco está por hoje concluída. Fiquem bem e até amanhã.
O
Carteiro sai de Cena
Ti
Joaquina – Atão,
ouçam lá!!! E se agora aconchegássemos os nossos corpos e dançássemos uma
modinha!!!
Entra
em cena o António a tocar a sua concertina.
Todos
dançam.
A
Laurinda muda começa a fazer gestos a Ti António para ambos se retirarem. Sem
ninguém dar por ela saem de cena.
A
música da concertina acaba e o António despede-se e sai de cena.
A
Ti Joaquina lança à conversa o caso amoroso entre Ti António e a Laurinda muda.
A
Joaquina depois da sua conversa sai de cena e,
FECHA O PANO
Depois, ABRE
NOVAMENTE O PANO e as personagens agradecem ao público com o
SOM DO ODE À
ALEGRIA--- FAIXA 5.
Sem comentários:
Enviar um comentário