MARIANA
Autora : Célia Chamiça
(Nota: Conto vencedor para publicação do II Concurso Literário Big Time Editora, publicado na Antologia "Contos de Ocasião, volume 1, pág. 78 a 85, Editado pela Big Time Editora, Itaquera, São Paulo, Brasil, 2013)
Mariana tinha sete anos e cabelos da cor da lua. Não sabia
sorrir, mas perseguia as estrelas com os seus olhitos ágeis, abrindo os braços
em ânfora como se quisesse recolhê-las todas no seu pequeno regaço. Desde que perdera a sua mãe que embrulhava a
tristeza em sonhos. Sonhava voar sobre um rio azul, serpenteando por
terras vestidas de cores garridas e enfeitadas de perfumes de hortelã, tília,
laranjeira e maçãs frescas.
No seu sonho, peixinhos prateados saltavam ofuscando-lhe o olhar e a
menina deixava-se transportar numa imensidão de azul onde rio, mar e céu se
confundiam num manto único que a embalava docemente. Tão docemente que lhe
lembrava o colo suave e seguro de sua mãe.
Mariana tinha lábios de cereja e olhos da cor do mel, mas deixara de
sorrir. Tinha bochechas como pele de pêssego que apetecia trincar, corria pelos
prados, embalada nas searas, mas deixara de sorrir.
Certo dia, uma ave, de certo jeito atrevido, passeava por ali e
deteve-se a observar aquela menina, nascida em Cabeceiras de Basto, e que muito
gostava de se refugiar em Moinhos de Rei. Não tanto pelas brincadeiras que por
lá podia fazer, mas porque se lembrava da história daqueles moinhos, tão velhos
como seria El Rei D. Dinis, como contava a doce voz de sua mãe.
A ave que era muito viajada, pois de tempos a tempos migrava para o Sul
em busca do calor, apresentou-se com toda a elegância. Dobrou a asa direita,
inclinou levemente as penas da cabeça e, sorrindo, apresentou-se.
— Sou ave dos beirais, do mundo inteiro cidadã.
Mariana voltou-se, olhou aquela ave intrometida que com o
seu bater de asas lhe apagava os sonhos, esfumando-os em nuvens brancas e
ignorou-a.
A ave não desanimou, curiosa que estava em conhecer aquela estranha
personagem que parecia uma papoila perdida na folhagem dos campos.
— Como te chamas? — Perguntou a ave à menina.
Mas Mariana não a ouviu e, triste com o esvoaçar dos seus sonhos,
continuou o seu caminho. Olhou o
relógio, colorido e alegre como o seu pai gostaria que ela fosse. Tudo fazia
para ensinar a sua filha a sorrir, mas nunca tivera tal alegria. Por mais que
tentasse torná-la feliz, Mariana olhava-o com aqueles olhos profundos e
quentes, abraçava-o com uma ternura imensa como o universo, mas não sorria.
A escola de Mariana era branquinha e luminosa, com um grande pátio para
saltar à corda e jogar à macaca, traçada a giz, muito certa, pelas mãos hábeis
da professora, no asfalto negro que tantas crianças pisaram ao longo dos anos.
Mariana gostava da escola. Todos os dias, ao chegar à entrada da sua
sala de aula, depositava um beijo quente na face da sua professora que lhe
esboçava sempre um sorriso acolhedor. Dos colegas da turma não se aproximava
muito, era uma criança muito só que ficava envergonhada com as traquinices e as
gargalhadas dos colegas. Gostava de os ver brincar, mas preferia ficar no seu
canto observando-os à distância, como se os não visse.
Na escola, Mariana aprendia
a escrever, a contar e a desenhar, mas o que ela mais gostava era de aprender a
ler. A leitura era para Mariana uma chave mágica, como se fosse uma varinha de
condão, que trazia até si histórias de terras muito distantes com florestas
imensas, de tempos muito antigos cheios de cavaleiros valentes e lindas
princesas. Essas histórias faziam-lhe lembrar uma vez mais D. Dinis e a voz de
sua mãe a contar-lhe histórias do rei, da sua família e dos seus feitos por
Portugal. Mas, Mariana aprendia tudo isto sem sorrir.
No recreio da escola,
encostada a um plátano verde que havia visto crescer tantas crianças, comia uma
saborosa carcaça com manteiga e mel que seu pai lhe havia preparado de manhã. O
cesto de verga, depositado no chão, continha ainda uma apetitosa laranja e um
pacote de leite. Era um lanche muito cuidado que tinha os alimentos importantes
para Mariana crescer forte e saudável. Nada de chocolates e pacotes de batatas
fritas que sabem bem, mas não colaboram para uma alimentação equilibrada.
Sr. Gafanhoto saltitante exibia-se para Mariana, orgulhoso das suas
acrobacias. Mostrava as suas patas longas e ágeis e saltitava em volta da
menina não se afastando muito da sombra do plátano.
— Repara nos meus saltos, dificilmente verás saltos iguais aos meus na
natureza. Bem, entre os insectos, quero dizer. Não posso pensar comparar-me com
as gazelas ou os golfinhos, mas, entre os insectos, eu e os meus irmãos
gafanhotos somos conhecidos acrobatas, sabias? Todos os circos querem ter
gafanhotos, mas nós, como somos muito unidos, dizemos: “Ou o circo contrata
todos os nossos irmãos ou nós não aceitamos trabalhar no circo”, é por isso que
nunca viste gafanhotos no circo. Como te chamas?
Mariana, de olhos perdidos na alegria transbordante das crianças no
recreio da escola, nem se apercebeu do pequeno insecto saltitante.
As aulas recomeçaram e Mariana
voltou a mergulhar no prazer de aprender as letras traquinas que pareciam
dançar alegres no papel branco do seu caderno diário. Se ela não fosse uma
menina tão triste teria percebido que as letras lhe acenavam e a chamavam à
brincadeira:
—
Eh, tu aí, menina! — Chamava a letra E, tentando captar a atenção de Mariana
para os seus três braços esticados, abanando muito animados.
— Ah... Ah... Ah. Ela não te ouve, dizia rindo a letra A, com as suas
duas pernas muito afastadas.
— Oh! Que pena! Ela é tão bonita. Gostava que ela brincasse connosco. — Dizia
a letra O com as bochechas coradas muito redondas.
— I, tenta tu chamá-la para ver se ela olha. Atira a tua pinta ao ar, pode
ser que ela repare em nós. — Diziam as outras vogais desafiando a letra I.
—
Uh! Uh!... Não conseguiram - dizia a letra U, muito pouco solidária com as suas
colegas do alfabeto.
— Olha, que descaramento! Nós esforçámo-nos por ela nos ver, mas tu nem
sequer tentaste, letra U. Não tens nada que criticar-nos. — Dizia a letra O. — É
muito difícil a uma criança triste perceber que nós brincamos e rimos com ela.
Repara, continua a ler tão séria como começou, sem ver as nossas brincadeiras.
Mariana acabou de ler o seu texto e nem se apercebeu de que as vogais
eram suas amigas e queriam brincar com ela.
No refeitório da escola, à hora de almoço, Mariana sentava-se num canto
da mesa procurando ficar esquecida dos olhares dos outros meninos e meninas.
Eles comiam e faziam traquinices ao mesmo tempo. Parecia nunca ter fim o que
tinham para contar uns aos outros. Só ela parecia nunca saber o que dizer de
alegre ou divertido, por isso se fechava no seu silêncio e olhava atenta e
triste por estar fora de todo aquele rebuliço.
À tarde havia a aula de música a encher o ar com as melodiosas canções
que a professora tocava ou entoava para deleite dos alunos.
Todas as crianças gostavam daquela aula e Mariana tinha uma voz tão
especial que deixava enternecidos aqueles que a ouviam. A menina triste quando
cantava parecia libertar a sua alma infantil prisioneira.
O instrumento que melhor conjugava com a voz de Mariana era o violino.
Esse, instrumento de cordas, parecia que chorava, pedindo para ser consolado.
Mariana sentia-se como o violino, frágil e triste.
O violino, que compreendia tão bem a tristeza de Mariana, queria
dizer-lhe que também ele sabia fazer sorrir: embalava bebés em doces melodias,
envolvia namorados numa música quente e terna, empurrava bailarinos para valsas
magníficas em palácios esplendorosos. Mas Mariana só ouvia a tristeza sair das
suas cordas vibrando sob o arco.
— Se fosses um instrumento divertido como eu eras capaz de fazer a
menina voltar a sorrir. — Dizia o acordeão.
—
Ou como eu que sou de uma alegria electrizante. — Dizia a guitarra eléctrica.
— Ou como a nossa irmã pandeireta, que é bem divertida. — Continuava o
acordeão para o violino. — Ias ver que conseguias animar a menina.
—
Ou como as nossas primas castanholas, que vivem em Sevilha — Continuava a
pandeireta.
— Vocês não compreendem. — Dizia o violino — Quando se está triste no
nosso coração não é a diversão que nos fará sorrir. É preciso algo que nos
aqueça a alma, um sinal de amor, para recuperar a alegria que existe dentro de
cada um de nós.
Quando a aula de música terminou, Mariana preparou-se para as
actividades de tempos livres que tinha até ao fim da tarde. A monitora anunciou
que iriam fazer um quadro sobre um lugar de sonho para oferecer a alguém de
quem gostassem muito.
Mariana olhava o papel branco que lhe parecia ameaçador. O vazio era
terrível, parecia permitir tudo mas, ao mesmo tempo, parecia que nada ficaria
bem ali.
Um lugar de sonho... Um lugar de sonho... — pensava Mariana. — Um lugar
de sonho para ela era não estar ali nem em lugar nenhum. Um lugar de sonho era
o passado, onde pudera estar com a sua mãe.
— Olha — Dizia-lhe o pincel de tinta amarela — Pinta um sol
grande que aquece todos os meninos que têm frio.
— Nada disso — Dizia o pincel de tinta azul. — Pinta
o mar cheio de peixes que assim mata a fome a tanta gente e diverte os meninos com
as suas ondas brincalhonas.
— Que espertos que são! — Dizia o pincel de tinta
verde. — Ela deve mas é pintar as árvores, os legumes, as frutas e os arbustos.
A natureza está cheia de verde.
— E de vermelho. — Envaidecia-se o pincel de tinta
vermelha. Vermelho é o sangue que é vida em todos nós e é também a cor da terra
quente de África.
Mas, Mariana não via amarelo, azul, nem verde, nem vermelho, pois os
seus olhos pararam no pincel de tinta preta e achou que não conseguiria pintar
nenhum lugar de sonho com aquela cor que cobria a noite de tristeza e solidão.
Terminado o tempo, todos entregaram os seus desenhos, mostrando mil e um
mundos de sonho à Monitora para que os colocasse numa moldura. Só Mariana
entregou a sua folha em branco.
—
Então, Mariana, não conseguiste desenhar nada? — Perguntou a monitora.
— Este é o meu lugar. — Respondeu Mariana. — Onde tudo está sem cor.
A Monitora respeitou a ideia da menina e, procurando ajudá-la a
descobrir tempos mais felizes, colocou a folha branca numa moldura e disse-lhe:
— Aqui tens Mariana. Espero que um dia possas fazer aí uma
pintura com cores muito alegres. Alguém há de
ajudar-te um dia a chegar lá e, se calhar, mais depressa do que todos
pensamos. Eu também assim o espero, pois gosto muito de ti.
Mariana pegou na moldura e foi para casa, decidida a não mostrar a ninguém
a folha vazia emoldurada, pois sabia que isso deixaria o seu pai ainda mais
preocupado.
Pelo
caminho, à beira do jardim, estava um velho solitário com o olhar perdido num
horizonte longínquo.
Mariana passou por ele e sentiu que o tempo se demorava naquele cabelo
branco, na barba semeada no rosto cheio de rugas e naquele olhar de um verde
suave, já quase sem cor, como um mar parado de águas que nunca mais foram
navegadas.
Mariana via aquele velho sempre que passava no jardim e nunca o vira
falar com ninguém. Sabia que ele, em tempos, havia sido um excelente sapateiro,
procurado por muita gente da vila para fazer sapatos bonitos e confortáveis. Dizia-se
que não havia mão como a dele para trabalhar o cabedal. Dizia-se ainda que
calçara muitos habitantes de Cabeceiras de Basto, desde as primeiras botas dos
rapazes aos seus sapatos para o casamento e até os que levaram para a sua
última morada.
António Fontes era o sapateiro mais antigo. Enquanto trabalhara, toda a
gente sabia quem era ele, hoje não se sentia ninguém, parecia a folha em branco
de Mariana.
Mariana olhou a sua folha de novo e teve uma ideia. Sentou-se na relva,
puxou os seus lápis de cor e desenhou o sapateiro num mundo fantástico, rodeado
de sapatos belíssimos de muitas cores e feitios diferentes. Sapatos de
crianças, de homens e de mulheres. Sapatos de pobres e de ricos. Sapatos de
tecido e de cabedal. Sapatos de desporto, chinelas de quarto e sapatilhas de
bailado. Sapatos confortáveis e sapatos muito elegantes e vaidosos.
O velho parecia nem ter dado pela presença da menina, tal como ela não
dera pela presença da andorinha, do Sr. Gafanhoto, das vogais que queriam
brincar e dos instrumentos musicais que queriam transmitir alegria ao seu
coração de criança triste. Sentado na ponta do banco do jardim, meio
adormecido, António Fontes passava os dias procurando esquecer o vazio do seu
tempo que lhe pesava sobre os ombros cansados.
Quando terminou o desenho, Mariana estendeu-o ao sapateiro para que o
visse.
O homem não reagiu.
Mariana pensou que ele não aceitara por não ter escrito no desenho uma
dedicatória para ele, mas que poderia escrever? Interrogava-se a menina, sem
saber que o velho sapateiro não tivera nunca tido oportunidade de aprender a
ler e a escrever.
A doce pequena, como não sabia ainda escrever muita coisa, escreveu esta
frase muito simples:
“Ao sapateiro amigo. Com um beijinho da Mariana”.
— Tome, fiz isto para si. — Disse a menina, estendendo ao homem o
desenho emoldurado.
A voz da menina arrancou o velho
sapateiro ao seu abandono solitário. Olhou o desenho cheio de sapatos que lhe
fizeram lembrar a sua vida cheia de trabalho, mas também rodeado de gente e
sentindo-se útil. Pegou no papel, tremendo com os seus dedos cheios de calos,
olhou para o desenho, sorriu para a garota e disse:
— Olha, se não é a pequena Mariana? Ainda me lembro dos sapatos que fiz
para ti quando nasceste: brancos e leves como a espuma. “Para a minha pequena
princesa. Quero que corra como uma borboleta, livre e feliz”, pediu-me a tua
mãe.
A
menina compreendeu que a Mariana de quem o homem falava era a sua própria mãe,
pois há muitos anos que o velho António deixara de trabalhar e o pedido era o
da sua avó Julieta. Mas, ao ouvir falar da mãe daquela forma, compreendeu que
se abrisse o coração à sua memória doce, poderia tê-la sempre consigo, encorajando-a
a viver como um pássaro livre e desperto para a grande maravilha do universo.
Nessa tarde, Mariana travara amizade com o velho sapateiro e, desde esse
momento mágico para ambos, os dias ganharam para os dois renovado sentido e
alegria.
Todas as tardes, António Fontes, sentado no banco do
jardim, aguardava a menina a quem ajudara a recuperar o sorriso e ouvia-a
contar, admirado, as fabulosas descobertas do mundo das letras e dos números
que a escola lhe proporcionava e que ele nunca conhecera. Por sua vez, Mariana,
sentada no chão, junto ao velho sapateiro, abria os seus olhos grandes e
entusiasmados, ouvindo da boca trémula e orgulhosa do sapateiro memórias
fascinantes sobre os sapatos que em tempos fizera e as vidas cheias de histórias
das pessoas que os calçaram.
António Fontes e Mariana souberam encontrar o lugar de
sonho de que tanto precisavam para reinventar a alegria nas suas vidas tristes
e solitárias, bastou para isso, um gesto de amor.
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