A louca
Nota da Autora, Célia Chamiça:
O presente conto, em 2008, foi agraciado com o 3º Prémio Irene Lisboa, promovido
pela Câmara Municipal de Arruda dos Vinhos, encontrando-se para publicação pela
referida Autarquia.
DEDICATÓRIA:
À memória de minha mãe, Maria Eugénia, que é a mulher
mais admirável e com a maior capacidade de amor que alguma vez conheci em toda
a minha vida.
Não se lhe conhecia nome, nem idade,
aparecia e desaparecia por temporadas tão irregulares como o seu próprio
pensamento. No entanto, era nos refúgios verdes da Quinta do Marinheiro que
surgiam sinais da presença daquela louca com cabelo cor de fogo: objectos que
estimava e de que não se queria separar, objectos que a prendiam a um passado
que constituía o seu presente e também o seu futuro.
André Santiago, que se encontrava a
escrever uma tese de doutoramento sobre Egas Moniz — O investigador
português premiado com o Nobel da Medicina, costumava dirigir-se aos
jardins da Quinta para escrever. Era um ritual que cumpria diariamente com a
certeza de ali se encontrar no local ideal para laborar os seus pensamentos, em
torno da informação recolhida na Casa-Museu, como se de um laboratório se
tratasse. O médico humanista e investigador teria gostado de saber que o seu
espírito ficara plasmado na sua antiga casa, que em testamento legara para
usufruto de todos os seus visitantes.
Foi precisamente este jovem doutorando
que numa das suas habituais tardes, esta de falta de inspiração, se apercebeu
de algo preso a um arbusto que lhe cativou a atenção, fácil de despertar para
algo que não a sua folha em branco.
Tratava-se de um chapéu e tal forma puído, que se tornava
impossível dizer que cor teria tido. O rapaz sorriu com ar irónico perante tão
inusitado objecto. Não fazia sequer ideia de alguém que usasse tão ridículo
chapéu. O desprezo pela condição em que o objecto se encontrava superou a
curiosidade de o procurar identificar, pelo que se limitou a observá-lo e a
sugerir que aquele lixo fosse removido do jardim.
— Nem pensar. — Respondeu-lhe,
peremptório, o jardineiro da Quinta, a quem se dirigira para solicitar a
remoção do dito objecto.
— Então, o senhor Joaquim tenciona
deixar aquele chapéu gasto e sujo a decorar os arbustos de um jardim de que se
ocupa com tanto cuidado?
— Esse chapéu pertence a alguém que o
virá buscar mais tarde.
Enigmático, o velho jardineiro não disse nem mais uma
palavra sobre o assunto, por mais que o rapaz insistisse em questioná-lo.
Os dias iam correndo longos e quentes
para André, que os sentia cada vez mais enfadonhos, numa vila onde começava a
sentir-se enclausurado. À medida que cresciam as saudades da cidade e do seu
bulício, diminuía a inicial visão romântica do bucólico da Quinta.
Entre dias de maior inspiração e outros
de vazio de ideias, o jovem habituou-se de tal modo à presença do chapéu abandonado
num dos refúgios da Quinta, que quase já lhe parecia que este fazia parte da
natureza que o envolvia.
Não teria voltado a pensar no assunto
não fora ter desaparecido o dito chapéu e, no seu lugar, ter surgido um não
menos intrigante avental de riscas largas e cor indeterminada.
Ao avistar, entre duas sebes, o cabelo branco do senhor
Joaquim aparando com toda a arte os galhos verdes, não resistiu e galhofou:
— Então, senhor Joaquim, o avental
também é para ficar?
—
Pois sim, vá gozando, enquanto tem idade e saúde para isso.
Sem compreender o que tinha esta observação a ver com a sua
questão, continuou tentando aperceber-se do que se passaria ali:
— O senhor também não se pode queixar,
não está nada mal conservado e a sua cabeça é até mais fresca do que a minha.
— Não faça tantas noitadas metido no
café e nos copos e verá que a sua cabeça lhe agradece.
— Que sabe o senhor das minhas noites?
— O que toda a vila sabe, que veio cá desinquietar
as nossas pequenas. Não lhe chegam as da cidade? Olhe que temos cá muito boas
raparigas. Não brinque com os sentimentos delas que também não gostaria que
brincassem com os seus.
— Não me diga que pensa isso, senhor
Joaquim? Eu nem arranjei cá namorada. E, se arranjasse, era entre mim e ela o
assunto, ninguém mais tinha nada a ver com isso.
— Ora meu rapaz, não me tome a mal. Eu
sei o que é sangue novo. Ainda tem muito para viver e para aprender.
E, apontando com a tesoura de podar
para a folha em branco, continuou:
—
Escreva e estude que é o que sabe fazer bem. Deixe os jardins cá à minha
guarda, que cuido deles desde tempos em que você ainda nem estava na barriga da
sua mãe.
André Santiago sentiu as faces afogueadas por um misto de
vergonha e raiva. Quem pensava aquele velho que era? Decidiu não lhe dar mais conversa,
visse o que visse na Quinta.
Desde esse diálogo pouco agradável, o
jovem vinha instalar-se a escrever e limitava-se a lançar um seco cumprimento
ao jardineiro se acontecia que ele passasse por onde se encontrava.
Ficara com uma péssima impressão do
homem. Parecera-lhe arrogante e bruto. Falou mesmo desse facto com uns amigos
com quem partilhava o serão numa das esplanadas da vila.
— O Ti Joaquim da Quinta, malcriado
contigo? Só se lhe fizeste alguma! O homem é um puro-sangue no melhor sentido
da palavra, recto e firme como poucos há. Diz-se que respeitava até o louco que
cravejou de balas o Prof. Egas Moniz. Nunca ninguém lhe ouviu uma palavra
incorrecta e olha que muita gente visita a Casa-Museu por causa do magnífico espólio
artístico e científico. Pelo contrário, tem sido sempre louvado pela sua arte
de podar e pelo seu trato educado para com todos.
André, despeitado, resolveu não prosseguir o relato. Ia
falar-lhes dos estranhos e sujos objectos deixados nos jardins da Quinta, mas
decidiu terminar a conversa por ali. Certamente não iriam acreditar nele e
pensariam que estava a querer arranjar problemas ao jardineiro por ter
embirrado com ele.
“O Prof. Doutor António Caetano de
Abreu Freire (Egas Moniz) recebeu o Prémio Nobel da Medicina e Fisiologia, em
27 de Dezembro de 1949, graças à sua inexcedível investigação científica no
campo das doenças mentais e da forma como as estudar e tratar.”
Tinha acabado de redigir estas linhas
quando se apercebeu de um vulto esquelético e andrajoso atrás de si. Pressentiu
a chegada mais pelo cheiro que pelo ruído que mal se recordava de ter captado.
De cabelos cor do sol-pôr, emaranhados
e afagados com carinho por uns dedos longos, sob o chapéu que bem conhecia,
estava então à sua frente a suposta proprietária do mesmo.
André, suspenso dos movimentos suaves
da misteriosa figura que parecia nem dar pela sua presença, não conseguia
desprender dela o olhar como se um magnetismo especial irradiasse daquela
frágil mulher.
Esta, quando terminou de ajeitar o
chapéu, retirou um xaile que trazia pelas costas e deixou-o no mesmo arbusto de
sempre.
Enquanto pousava aquele acessório,
dispensável com tanto calor e esgarçado pelo tempo, ia cantando baixinho uma
ladainha incompreensível que soava a canção de embalar, parecendo acariciar uma
memória guardada algures num canto do seu pensamento à deriva. Quando terminou,
foi embora, deixando atrás de si a dúvida sobre o seu próprio aparecimento.
O
jovem estudioso temeu estar a ter ilusões pouco saudáveis e, desta vez, sentiu
que tinha de tocar o sujo objecto para se certificar de que este era real e não
produto da sua imaginação.
Cada vez mais solitário e embrenhado
nos seus pensamentos, André decidiu abandonar tudo. Estava farto daquela tese
que não tinha fim e sentia-se perdido ao confrontar a sua vida e os seus
valores pessoais com os do grandioso homem que estudava. Sentia-se em questão e
isso incomodava-o, por isso, decidiu regressar a Lisboa, à sua cidade e aos
lugares que lhe eram familiares e não o atraiçoavam com segredos interditos e
figuras estranhas.
Porém, por mais que procurasse afastar do seu pensamento a
figura do Professor Egas Moniz, esta pairava sobre si como uma sombra,
condenando-o a terminar o estudo iniciado.
—
Parece bruxedo, coisas de espíritos, como se o médico, no além, me obrigasse a
terminar esta tese maldita. — Desabafava no regaço confortável de uma
companheira da noite que não o escutava.
—
Quererá ele fazer alguma revelação estranha através de mim? Científica ou
outra, que ele era uma personalidade extraordinária. Serei eu um simples
instrumento de um plano sobrenatural? — Arrepiou-se com esta ideia perturbadora
que lhe invadia o cérebro já saturado pelo álcool.
A intranquilidade precipitou-o num consumo crescente que
levou a um estado de quase inconsciência onde se sentia a pairar sobre as
dúvidas e questões que o incomodavam.
Quando acordou, na manhã seguinte, tinha a cabeça pesada
como chumbo e foi com enorme dificuldade que ouviu do seu orientador científico
um ultimato inquestionável. Saiu da Universidade sentindo que o seu corpo
caminhava por fracções separadas que insistiam em não se ajustar umas às
outras.
De regresso a casa, as admoestações da mãe, que lhe
telefonara insistentemente até o apanhar, sobrecarregaram ainda mais o seu dia.
Farto de tanta pressão e sem percurso
alternativo imediato para a sua vida, decidiu regressar a Avanca para terminar
rapidamente a tese e ir para o estrangeiro. Queria fugir da família, dos
supostos amigos, da Universidade, de todos... parecia-lhe que em Portugal se
asfixiava.
Assim que, em Avanca, desceu do comboio
foi interpelado:
— De
volta à nossa vila?
Quis perceber quem lhe falava, mas não era
fácil.
— Tão
pouco tempo fora e já não me conheces?
O esbater do ruído de fundo permitiu-lhe reconhecer a voz do
jardineiro. Este parecia uma figura de um museu de arte popular, como se fosse
um camponês a trajar a roupa nova dos tradicionais festejos anuais. Estranhou
vê-lo assim e perguntou:
—
Também foi viajar, senhor Joaquim?
—
Espero uma visita.
—
Deve ser alguém importante, para se aprumar dessa maneira.
—
Uma velha amiga.
André conseguiu reter um esgar de riso a tempo de não
ofender o homem.
O velho Joaquim tinha uma paixão secreta. Quem diria? E a
dar-lhe a ele sermões em relação às raparigas de Avanca! Não se conteve e disse
intrigado como quem estranha aquela espera despropositada de um passageiro
retardado:
— O último comboio já chegou.
— Obrigado, cá a espero.
— Já não vem mais nenhum comboio hoje.
— Reforçou.
— Eu sei. Boa noite.
André, uma vez mais, não compreendeu o velho, mas não iria
incomodar-se mais com as suas palavras pouco claras.
O antigo apeadeiro, àquelas horas quase deserto, parecia
situar-se num mundo fora do tempo.
André tinha já dado alguns passos em direcção ao café que
ficava ali próximo quando sentiu alguém embater contra ele. Deu um salto, mais
pela surpresa da situação que pela força do embate, porque ao caminhar ia
olhando para o café para se certificar se não fechara ainda, pelo que não se
deu conta da figura feminina que avançava decidida em linha recta como se de
nada tivesse que se desviar.
Reconheceu-a pelos andrajos e pelo
cabelo, onde se equilibrava o habitual chapéu. Ainda protestou, aborrecido, mas
logo desistiu, pois viu-a continuar no seu passo de sonâmbula, em direcção ao
apeadeiro feérico.
Tinha já retomado a marcha, mas a sua curiosidade foi mais
forte e fê-lo voltar-se. Não é que o velho jardineiro se aperaltara para ir ao
apeadeiro esperar a louca andrajosa que não descera de nenhum comboio, mas sim
da vila?
Chegou ao café já as portas estavam fechadas, mas a simpatia
de uma vila ensina muito ao profissionalismo da cidade.
O senhor António, ao avistá-lo, voltou a destrancar os
ferrolhos, serviu-lhe um café quente e disse, logo de pronto, que o levaria à
pensão da D. Julieta.
— Ela
espera-o, não é verdade?
— Espera,
sim. Telefonei-lhe de Lisboa para reservar o quarto e avisar que vinha hoje no
comboio da noite.
— Vamos
lá então, que se faz tarde, e amanhã também é dia.
— Encontrei
há pouco o senhor Joaquim no apeadeiro. Ele não precisará de boleia?
António
sorriu e disse:
— Não
se preocupe com ele. Não vai voltar tão cedo.
— Vi
uma louca dirigir-se para ali. — Disse, apontando para o apeadeiro.
— É
natural, hoje é dia 1 de Julho.
— Aqui em Avanca dão viagens de comboio
grátis aos loucos nesse dia? — Gracejou com descarada ironia.
— Não, aqui em Avanca morreu o filho de
uma mulher num acidente ferroviário no dia 1 de Julho, há uns anos atrás. Desde
então, ela enlouqueceu e, todos os anos, no mesmo dia, o senhor Joaquim passa a
noite de vigília com ela a relembrar as histórias da criança que nunca cresceu,
a não ser no pensamento mirífico da mãe e que ele viu com vida apenas durante
uns derradeiros segundos que nunca mais esqueceu.
— Desculpe. — Disse André, atrapalhado
com a surpresa e sensibilidade da questão.
— És muito novo, meu rapaz, tens ainda
muito que aprender.
— Foi o que me disse em tempos o senhor
Joaquim. Aqui são todos muito misteriosos — Disse, lembrando-se dos objectos
encontrados nos refúgios da Quinta do Marinheiro.
— Todos os locais têm os seus mistérios
e as suas gentes, os seus segredos. Não ensinam isso na escola?
— Ensinam. — Disse André, pela primeira
vez com sentida modéstia. Mas a vida é a melhor mestra de todas, já os antigos
o diziam.
— Parece que estás a compreender
melhor, meu rapaz. Começas a ter peito feito para a vida. Chegaste aqui como um
galo de capoeira, emproado com o teu saber e a importância dos teus estudos e
da tua vida de cidade e, sem saberes, não passavas de um franganote arrogante.
Agora começas a tornar-te um homem lúcido.
André sorriu e disse:
— É, senhor António, às vezes as ideias,
se são muitas e andam baralhadas e mal arrumadas, entopem-nos o pensamento e
tornam-nos estúpidos.
— Mas se entopem, faz-se-lhes como aos
ouvidos, sacodem-se para desentupir. Todos precisamos de uma boa sacudidela às
vezes.
— Então não precisamos? — Concordou ele,
sentindo o privilégio de partilhar a experiência e sabedoria do disponível habitante
de Avanca. Prosseguindo, disse, respeitoso:
— Senhor António, se não vir
inconveniente, acha que me pode contar o que tem o senhor Joaquim a ver com a
história da louca? O filho era de ambos?
— Vês como já falas de outro modo, meu
rapaz? Assim até dá gosto falar contigo, cara a cara e pensamento limpo. Não
andamos cá para fazermos chacota uns dos outros. Agora sim, com esses modos
posso contar-te a história deles porque mostras respeito e por isso mereces
conhecê-la. O respeito é uma coisa muito bonita.
— A minha avó também dizia isso, mas
pelos vistos eu tinha-me esquecido das palavras dela.
— Não esquecerás mais. Agora
aprendeste-as com a tua própria experiência e, por isso, é como se te ficassem
gravadas na pele, como uma marca. Vamos então à história: Não, o filho não era
de ambos. O Ti Joaquim nem sequer os conhecia, nem à mãe nem ao filho. Ele é
apenas a pessoa que teve a infelicidade de o ver tombar à linha quando um
comboio ia a passar e de socorrer a mãe antes de esta se atirar para tentar tirar
o filho, ficando lá inutilmente.
— Alguém empurrou o garoto, sem querer?
— Não, o comboio ia partir e o garoto
convenceu-se de que a mãe estava lá dentro, procurando-o pelas várias
carruagens. Foi ao tentar entrar que se deu a desgraça.
— A mãe era de cá?
— Não. Nem se sabe de onde era.
— Como é isso possível passados vários
anos? Certamente investigaram para ver se haveria família da pobre mulher que
se pudesse ocupar dela.
— Claro que sim. As autoridades fizeram
tudo o que puderam. Apenas se conseguiu saber que descera neste apeadeiro com o
filho e, enquanto o comboio fazia uma breve paragem, ela aproveitou para se
reabastecer de água e alimentos para os dois. Sem dar conta, o garoto
afastou-se dela e, na confusão dos muitos passageiros apeados, uns para ficar e
os outros para retomar o comboio, desencontraram-se. Quando o apito soou para o
comboio retomar a marcha, tudo se precipitou para a tragédia que já conheces.
Nunca se chegou a saber o nome, idade, nem de onde vinha a mulher porque ela
enlouqueceu quando viu o filho destroçado sobre os trilhos do caminho-de-ferro.
— Não trazia bilhete e bagagem com
documentos que a identificassem?
— Na mão tinha apenas um pequeno
porta-moedas com algum dinheiro. Tudo o resto deve ter ficado no comboio, nas
malas que depois seguiram abandonadas e foram possivelmente roubadas antes de o
comboio chegar ao terminal, pois nada se encontrou que pudesse ter relação com
ela ou com o filho.
Talvez tivesse partido para longe de
alguém que não queria mais ou de uma vida que já não suportava. Certo é que
nunca ninguém a procurou por cá.
— Talvez quisesse fugir de todos e nem
tivesse dito para onde ia. — Aventou André, com voz triste.
— As fugas nunca dão bom resultado. — Afirmou
o experimentado homem, conseguindo ler na alma do atormentado rapaz mais do que
as palavras dele diziam.
Ele corou com a sabedoria do outro e
disse apenas:
— Pobre mulher! Pobre senhor Joaquim!
Silencioso e comovido com a dor daqueles que inicialmente
não compreendera, constatava agora que o seu julgamento e sarcasmo fácil o haviam
afastado das verdades mais profundas do ser humano. Ali, como possivelmente em
outras situações da sua vida de que não se dera conta. O que seria que de
importante já lhe passara ao lado sem que ele se apercebesse? Nunca saberia,
perdera a oportunidade de se enriquecer humanamente com essas situações e, quem
sabe, talvez tivesse perdido importantes oportunidades de amar. Mas,
certamente, nem tudo estava ainda perdido, era muito novo e decidido. O seu
problema até ali era não ter escolhido ainda o seu rumo e agora encontrara-o,
quando e onde menos esperara.
No dia seguinte, ao regressar aos
jardins da Quinta, sentiu-se de ânimo renovado; a Casa-Museu e os seus refúgios
na Quinta haviam-lhe tocado a alma e deixado saudades. No bolso levava umas
luvas grossas de jardinagem que estendeu ao velho Joaquim, assim que o viu
aproximar-se, já com o seu habitual macacão, dizendo-lhe:
— Aqui está um pequeno presente para
si, com as minhas desculpas. Toda a estupidez tem limites e eu lá dei com os
meus.
O jardineiro comoveu-se com o gesto e as palavras e,
agarrando as luvas, voltava-as de um lado e do outro com jeitos de bom
conhecedor:
— Sim, senhor, belas luvas! Obrigado, meu rapaz.
Continuava ainda sem compreender o que levava a mulher a deixar
os seus objectos por ali, mas não se sentiu no direito de importunar as tristes
memórias do senhor Joaquim. Até porque ele poderia pensar que as luvas eram uma
espécie de macabro suborno para o ouvir contar as tristezas de uma ruiva louca
e de um jardineiro solitário.
Estava entretido nos seus pensamentos,
procurando ajeitar-se para retomar a escrita, quando sem dar conta, tropeçou
num par de sapatos deformados que por ali se encontrava.
Apercebendo-se da situação, o
jardineiro olhou-o expectante.
— Já sei, a dona virá buscá-los mais
tarde. – Disse André.
O velho sorriu, feliz por ter assistido ao amadurecimento do
jovem, e disse:
— Virá buscá-los mais tarde e deixará
outro objecto no seu lugar, porque acredita que o seu filho anda por aí escondido
com medo dos comboios e os refúgios da Quinta do Marinheiro parecem-lhe
sussurrar que passou por ali.
— E qual a razão dos objectos?
— São sinais da sua presença, peças da
sua roupa que o filho bem conhece, para que saiba que a mãe anda por perto à
sua procura. É também por isso que usa sempre as mesmas roupas e não aceita outras
que lhe queiram dar.
— Ela reconhece alguém?
— Só o meu rosto, que associa a alguém
que conheceu o filho e com ela partilha as suas memórias que o eternizam.
— Sendo louca e sem noção do tempo,
como sabe ela quando é o dia 1 de Julho de cada ano?
O jardineiro encostou-se a um tronco sólido como se
procurasse forças para o sustentar e disse:
— Um dia, angustiado pela desgraça que não conseguia
esquecer, voltei ao apeadeiro já noite alta. Quando cheguei, ela já lá estava,
e chorava e uivava como um animal ferido. Peguei-lhe na mão e comecei a
conversar com ela como se nada se tivesse passado. Pedi-lhe que me falasse do
menino que tanto amava e os seus olhos ficaram com um brilho de felicidade como
nunca vi igual. Compreendi então que, se ali fosse comigo partilhar as memórias
do filho, não se lembraria da tragédia, mas sim do tempo que viveu com ele.
Disse-lhe então que não podia voltar mais ali sozinha porque era perigoso para
ela.
— Perigoso. — Concordou assustada,
lembrando-se certamente do terror que vivera. — Mas o meu menino, se vem cá e
não me encontra?
— Pode procurá-lo sozinha onde quiser,
mas não aqui.
— Mas, e se ele vem aqui?
— Vou
prometer-lhe uma coisa. Eu sou jardineiro na Quinta do Marinheiro, vou
mostrar-lhe onde é, para lá ir. E, quando vir uma rosa branca num arbusto, é um
sinal meu para si para virmos juntos ao Apeadeiro. Sozinha não, promete?
— Prometo. Rosa branca, vem comigo. Só
eu não. Perigoso.
— Sim. Como se chama o menino? — Perguntei-lhe.
— O meu filho. — Respondeu-me ela.
Trouxe-a comigo à Quinta. Ela aprendeu o caminho e começou a
aparecer por cá regularmente. Ainda lhe perguntei se queria ficar. Eu havia de
arranjar como, mas ela respondeu que não podia, tinha de ir pelas redondezas
até encontrar o filho. Desde então, todos os anos, no dia 1 de Julho, de manhã,
coloco sempre uma rosa branca junto ao objecto que ela lá deixou e, quando soa
o último comboio, ela dirige-se ao apeadeiro e eu também. A vida tem destas
coisas! — Desabafou o bondoso homem.
— Mas também a alma do homem é grande e
capaz de uma generosidade que faz a vida ter sentido... até para uma louca.
Acredite que ela tem vivido mais no seu mundo que eu no meu. Tenho andado por
aí meio perdido sem saber o que quero da vida. — Disse o rapaz.
— E já descobriste?
— Ainda não completamente, mas acho que
por cá já fui encontrando pistas.
— Procurando é que se encontra, meu
rapaz. E, nesta Quinta, descobriram-se coisas muito importantes para a
humanidade.
— Tenho muito a aprender consigo, senhor
Joaquim, tive sorte em o ter conhecido.
— E eu também, meu rapaz. Faz-me falta
quem fique por cá a conversar. Os meus botões já conhecem bem demais as minhas
mágoas. Vai saber-me bem ter ouvido fresco para as escutar; depois, ficam mais
leves.
— Se não tivesse ficado só, poderia ter
tido com quem partilhar essa dor. — Arriscou o jovem.
— Se não tivesse tido essa dor, não
teria ficado só. Ver alguém perder quem ama tanto pode fazer-nos ter medo do
amor. — Respondeu o jardineiro.
— Bem, sempre ouvi dizer que nunca é
tarde para amar. — Provocou-o o rapaz, brincando carinhosamente.
— Aquela ruiva já me dá trabalho que
chegue. — Respondeu o ancião, dando-lhe uma amigável palmada no ombro. — E,
agora, chega de conversa ou tornamo-nos os dois uns mandriões, nem tu escreves
nada nem eu podo o jardim.
André retomou a escrita e concluiu a sua tese muito mais
rapidamente do que imaginava, para satisfação dele próprio, dos pais e do
orientador da Universidade de quem se tornara grande amigo.
Despedira-se de Avanca com os seus habitantes no coração e
prometendo nunca os esquecer. Eram figuras demasiado intensas para poder alguma
vez ser esquecidas por mais longa que viesse a ser a sua vida. E eles sabiam
que assim era, pois também ele tocara as suas vidas deixando laços invisíveis a
uni-los.
Era 1 de Julho de um ano seguinte e o
calor, o mesmo de sempre, naquela época do ano. Quem naquela manhã visitasse os
refúgios da Quinta do Marinheiro estranharia encontrar por lá um chapéu coçado
em cima dos arbustos, mas não André.
Este, sorrindo, depositou um pequeno
botão de rosa branca junto a idêntica flor que já se encontrava ao pé do
chapéu. Quando se voltou, só teve tempo de estreitar o abraço corpulento de um
homem que lhe havia ensinado que a vida só vale a pena quando temos
generosidade para acolher as fragilidades dos outros e convertê-las em força de
vida para eles e para nós próprios.
André não resistira a voltar a Avanca
numa data tão especial e a partilhar a grandeza de humanidade de um jardineiro
que dava sentido à vida de uma mulher que perdera quem tanto amava. Devia a
ambos o sentido que encontrara para a sua própria vida, antes à deriva.
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