a varina e o ardina
Autora: Célia Chamiça
(O presente conto foi agraciado com menção
honrosa no 8º Concurso Literário-Prémio Escriba de Contos promovido pela Secretaria
Municipal de Ação Cultural da Prefeitura do Município de Piracicaba do Estado
de São Paulo, no Brasil, onde se encontra publicado na Antologia do "8º Prémio Escriba de Contos", pág. 59 a 61, Edição da Perfeitura do Município de Piracicaba, Secretaria da Ação Cultural (SEMAC), Biblioteca Pública Municipal "Ricardo Ferraz de Arruda Pinto", Piracicaba, Estado de São Paulo, Brasil, 2013
Houve em tempos uma varina
brejeira que chegava com o sol da madrugada e enchia o pátio com a sua voz
possante, anunciando a generosidade do mar lusitano e a bravura dos pescadores.
Trazia com ela o cheiro a
sal e maresia, desprendendo-se das saias tufadas que fazia ondular com ousadia
no olhar. Nos pés, uns tamancos gastos pelo tempo e uma saudade de areias
frescas embebidas de espuma e algas.
─ Olha a bela sardinha. É o
carapau fresquinho.
A mão em concha aumentava o
poder sonoro do pregão e irritava o jovem ardina de voz instável pelo estado de
transição etária em que se encontrava.
─ É o peixe-espada a
brilhar. Olha a sardinha linda.
O rapaz espreitava-a da
esquina, seduzido pela audácia das suas formas e gestos, ele, de rosto miúdo e
corpo franzino. Não queria deixar-se ver por aquela mulheraça que o intimidava
e fascinava deixando-lhe a cabeça e o corpo num turbilhão de revolta e desejo.
As pernas finas, saindo de
uns calções de sarja grossa, condiziam com a idade do rapaz, ainda a ganhar
masculinidade. A tiracolo a sacola com os jornais carregados de “gordas” que
ele tinha que gritar para abrir o apetite aos possíveis leitores dos jornais que
vendia. Anunciava escândalos e tragédias, enquanto pensava no jogo da bola e
nos seios fartos da varina.
Ela trazia na voz o canto
das ondas e no regaço um horizonte a perder de vista.
Ele sentia-se um pedaço de
nada, um pinto trôpego, caído do ninho, mas atraído para a aventura do abismo.
Ela nunca olharia para ele! ─ Pensava de si para si o garoto. ─ E se olhasse? ─
Continuava a pensar. ─ Fugiria apavorado ─ Pensava ainda.
Os jornais por vender
causaram-lhe um forte pontapé ao chegar a casa. O pai, com voz pastosa, quis
receber de pronto a magra maquia apurada.
─ E estes,
que fazem aqui? - Perguntou, furioso por ver as sobras de jornais diários que
amanhã já nada valeriam.
─ Não consegui vendê-los.
─ Porque não te esforçaste.
Estiveste outra vez a espreitar as pernas da varina, escondido na esquina do
Carvoeiro, ou julgas que não sei? Eu estou de olho em ti, meu calão.
Pois estaria, estaria. ─ Pensou
o pobre rapaz. ─ E estaria também certamente de olho na varina,
senão como saberia que o filho a espreitava e onde?
─ Vai-te embora. Ter-te aqui não dá o lucro para a despesa.
O Ardina saiu para dar uma
volta pelos jardins frescos da noite. Sabia que era ainda cedo para ter voltado
a casa, a mãe encontrava-se ainda a fazer os últimos serviços da noite, mas
tivera fome e esperança de que num breve salto à cozinha ninguém desse pela
presença dele.
Sozinho, fez rodar na terra
batida do jardim da vila o seu pião solitário e contou-lhe que, se tivesse
corpo que se visse, pediria à varina que lhe vendesse um sonho fresquinho.
Que diria ela se eu lhe
pedisse que me vendesse um sonho? ─ Perguntou em voz alta ao seu pião, como se
falasse com um companheiro e confidente.
O pião tombou e o rapaz
disse para o brinquedo numa voz triste de criança-adulta:
─ Pareces o meu pai quando vem a casa. Sempre a tropeçar e a
cair.
─ Que sonho me comprarias? ─ Perguntou a Varina que, passando
por ali, o ouvira.
Surpreendido pela presença
da mulher, deu um salto e preparava-se para fugir quando se ouviu a si próprio
dizer:
─ Que faz aqui a estas
horas? ─ Disse, experimentando parecer ameaçador, para não denunciar as forças
que o impediam de sair dali.
─ Nada que te diga
respeito. Este lugar é público. Que me querias comprar? Sonhos, dizias tu? Não
os tenho para dar nem para vender.
E, daquelas palavras,
desprendeu-se a imagem não da Varina, mas da mulher que ele nunca vira. Já não
cheirava a sal, mas a solidão; não tinha o mundo no olhar, apenas um barco
vacilante no mar-alto; o peito ondulado já não falava de luxúria, mas de tristeza
e ausência.
─ Queria aprender a ler. ─
Disse o rapaz. ─ Esse era o sonho que eu queria comprar.
─ Que dizes? ─ Perguntou ela surpresa com a resposta do
Ardina.
─ Gostava de ler os jornais que vendo.
Só consigo pagar para me lerem as gordas. Um copo de tinto pelas de cada
jornal. Depois é só gritá-las e os fregueses vêm atrás como se fossem fisgados
por um anzol.
A Varina ajeitou-lhe o boné
num meneio de carinho e disse:
─ Se não tivesse o meu homem, não me escapavas.
Ele sorriu tímido e
orgulhoso, sabia que ela dissera aquilo por ternura, mas quanto bem lhe fizera
acolher na voz quente dela aquela carícia verbal!
Viu-a afastar-se com o
avental oscilando levemente com o vento, num trejeito de saudade. Compreendeu
que o marinheiro amado não viera nessa noite procurá-la, estaria errante por
aí, entre vagas de tormenta ou sedução.
Simples, mas ternurento; Ficção mas espelho da realidade dum povo! Delicioso mas curto. Bravo. Continua e aposta em algo de maior dimensão.
ResponderEliminarQuim
Obrigada pelo encorajamento e um beijinho
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